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QUARTO DE DESPEJO
Favela, o quarto de despejo de uma cidade.
Luiz Carlos Vaz
Estou lendo, aos trancos, Quarto de Despejo. Num misto de
raiva e tristeza, ódio e esperança, lágrimas e risos... vou vencendo cada folha
como se fosse, eu também, um catador de papéis. Minha filha Juliana quando me
deu o livro disse: pai, vê se não chora muito!
Escrito em folhas sujas de papel catado, a partir de meados
dos anos 50, década em que eu nasci, o diário de Carolina Maria de Jesus, uma
favelada, uma catadora de papel que gostava de livros e de ler, só se tornou
público uma década depois... Prefaciado pelo colega jornalista Audálio Dantas, o repórter descobridor de Carolina, Quarto de Despejo é também o jornal de uma época. Um jornal que traz notícias
velhas, mas que continuam novas; notícias que, lamentavelmente, podem ser
escritas hoje, tamanha a atualidade que contêm. Mas não são “notícias” escritas
por jornalistas, foram escritas por quem viveu do outro lado das velhas
máquinas de escrever Royal; são verdadeiras reportagens sobre a miséria, sobre o
abandono, e o descaso social... e escritas por quem “vive sem amanhã”.
Outro dia eu conversava com uma jornalista, minha colega de turma,
sobre a vontade que temos, nós dois, de escrever nossas memórias e mandar uma
porção de gente à puta que pariu. Ou, pelo menos, à merda, já que as mães não
tiveram culpa de gerar gente tão hipócrita, tão insensível e tão usurpadora dos
sonhos e das alegrias alheias.
As pessoas que têm, graças ao trabalho alheio, depósitos de
milhões, bilhões em bancos do Brasil, do mundo, não percebem que com dez por
cento das “suas” fortunas poderiam devolver a dignidade e a esperança aos
desvalidos da sorte, além de acabar com a fome e a sede de todos os miseráveis do
Planeta. Só dez por cento! Os mesmos dez por cento que os falsos profetas-pastores
roubam dos pobres-crentes que ganham apenas UM salário mínimo. Ou menos!
Carolina Maria de Jesus, que estudou somente até “o segundo
ano”, lia e escrevia muito. E catava papéis; e catava livros; e catava cadernos
escolares de todas as matérias; e lia muito; e escrevia muito. E assim ela
escreveu o seu diário. Nele – onde por força da veracidade editorial, está
mantida a grafia original, encontramos anotações como essa:
13 de junho ... vesti
as crianças e eles foram para a escola. Eu fui catar lixo. No Frigorifico vi
uma mocinha comendo salsichas do lixo.
16 de junho ... O José Carlos está melhor. Dei-lhe uma
lavagem de alho e um chá de ortelã. Eu zombei do remédio da mulher mas fui
obrigada a dar-lhe porque atualmente a gente se arranja como pode. Devido ao
custo de vida, temos que voltar ao primitivismo. Lavar em tinas, cozinhar com
lenha.
... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos.
Eles respondia-me: - É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a
minha pele negra, e o meu cabelo rustico.
15 de julho Hoje é o aniversário de minha filha Vera Eunice.
Eu não posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que querer agarrar o sol
com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só
jantar.
16 de agosto Passei na sapataria. O senhor Jacó estava
nervoso. Dizia que se viesse o comunismo ele havia de viver melhor, porque o
que a fábrica produz não dá para as despesas.
31 de dezembro ... levantei as 3 e meia e fui carregar agua.
Despertei os filhos, eles tomaram café. Saimos. O João foi catando papel porque
quer dinheiro para ir ao cinema. Que suplicio carregar 3 sacos de papeis.
Ganhamos 80 cruzeiros. Dei 30 ao João.
... Eu fui fazer
compra, porque amanhã é dia de ano. Comprei arroz, sabão, querosene e açúcar.
... Espero que 1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto
no 1959, que dá para a gente dize:
Vai, vai mesmo
Eu não quero você mais.
Nunca mais
1 de janeiro de 1960 Levantei as 5 horas e fui carregar agua.
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Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog