|
O deputado Justino e a pequena Angelina. Arquivo da família. |
1º de abril. Apenas três lições nos "Anos de Chumbo"
Angelina Quintana (*)
Minha casa, da
infância em Bagé, era diferente. Morávamos com os meus avós, pais da minha mãe,
as duas irmãs dela, três sobrinhas, meus dois irmãos e meu padrinho. No total,
éramos 13. Mas, nem sempre foi assim. Esse formato de lar começou quando o meu
pai, o deputado estadual pelo antigo PTB e ex-secretário de educação do
Brizola, Justino Costa Quintana, foi cassado pelo Golpe de 64. Ele integrou a
primeira lista de políticos gaúchos cassados e, quando saiu da prisão, só havia
duas saídas: Deixar o país ou tentar recomeçar a vida em nossa terra natal.
Optou pela segunda alternativa.
Meu pai falava
pouco, lia muito e raramente saia de casa. No entanto, nunca perdeu o bom
humor. Por isso, vivíamos em meio a muitos cuidados e recomendações. Entre a
mais repetida: "Ninguém comenta fora de casa nada do que se fala aqui
dentro." Dentro desse contexto, destaco três momentos emblemáticos na
minha memória de criança. O primeiro foi quando cheguei do colégio e pedi que o
pai me ajudasse a fazer o tema, mostrando-me no Diário de Notícias a foto do
Governador do Estado, Euclides Triches, porque deveria colocar no meu caderno.
O pai mostrou-me a foto de Triches e disse-me que eu não colocaria aquela foto
no meu caderno, porque ele representava a ditadura militar. E, no local
destinado ao tema, colocou um bilhete explicando as razões por eu não ter feito
o tema. No outro dia, a professora leu, fez cara de braba e mandou que eu
sentasse. Não ganhei, nem perdi nota. Ficou um pacto de silêncio no ar.
Na mesma década
de 70, a minha memória registra outro fato marcante. A cidade de Bagé
mobilizava-se para receber o presidente Emílio Garrastazu Médici e no meu
colégio não foi diferente. Ao retornar do Grupo Escolar Mestre Porto, entreguei
ao meu pai a notificação de que era obrigatório esperar a passagem do
"ilustre conterrâneo" desfilar pelas ruas da cidade. Eu deveria estar
uniformizada (de tapa-pó e lenço de seda marinho), com uma bandeirinha do
Brasil em mãos e a desobediência representaria três dias de suspensão. Foi o
momento em que o pai endereçou um novo bilhete à escola. Desta vez, destinado à
diretora. Fui a única da minha escola que não fui saudar o presidente e não
perdi nenhuma aula. E ninguém me perguntou o porquê?
Assim, fui
aprendendo a lidar com o que se ensinava na escola e as verdades da minha casa.
A terceira imagem e, talvez, a mais forte também foi na saída da escola. O meu
colégio ficava às margens do Arroio Gontan -hoje canalizado e com várias
construções irregulares erguidas sobre o seu leito- e, quando eu estava
chegando na ponte, vi o meu pai saindo de casa escoltado por soldados armados e
entrando num Jeep do Exército.
Naquele momento, senti uma mistura de medo do que aconteceria com o meu pai e a
vergonha das minhas colegas e amigas que assistiram a cena comigo. Não recordo
quanto ele ficou preso, mas que somente a mãe ia visitá-lo e trazia notícias
dele e garantia que logo estaria de volta a nossa casa. Ainda bem que, naquela
época, eu não sabia que torturavam presos políticos.
Creio que, ali,
começava a aprender a lidar com as mentiras de casa e as mentiras da rua. Depois,
avançamos. E muito. Acompanhei com o meu pai o retorno dos exilados políticos,
as eleições diretas para governadores e prefeitos das Áreas de Segurança
Nacional (Bagé era uma delas), a luta pelas Diretas Já, a Constituinte de 1988
e lamento que ele não chegou a votar para Presidente.
Diante desse
quadro, hoje comemoro que o Golpe de 64, do dia 1º de abril, ficou na História
do Brasil como página virada.
Ditadura nunca
mais.
_____________________________________________
(*) Angelina Quintana é jornalista e amiga deste blog