A sala de estar |
Pequena crônica
sentimentaloide
Nikão Duarte
De uma caixa de
pasta de dente, ele fazia um caminhãozinho; de outra, um conjunto de sofá, duas
poltronas, uma pequena mesa de centro – eventualmente
substituídas/complementadas pelos móveis de uma sala de jantar.
É com essa
remota imagem que o guri de antigamente lembra seu pai, do curto espaço de
tempo em que conviveram. Um brinquedo para a filha mais velha, outro para o
único filho. Na sua visão de pai dos anos iniciais da segunda metade do Século
XX, os cuidados com as duas outras filhas, pequenas demais, eram
responsabilidade única da mãe dos quatro.
O caminhãozinho
de papelão, saído da sua habilidade artesanal, precisava de complementos
igualmente improvisados: havia que dotar-lhe de rodas, e estas saíam da parte
sobrante da caixa que ele cortava para evidenciar a cabine e a carroceria.
Como eram coladas, impunham ao veículo uma contraditória imobilidade, e ao
filho uma contida frustração.
O sofá, as
poltronas, as mesas e as cadeiras da irmã cumpriam uma função específica:
abrigar as figuras humanas que ela recortava de revistas e, às vezes, cobria
com roupas extraídas de outras imagens.
Na totalidade da
infância de há tanto tempo, os dois irmãos não ansiavam por brinquedos
melhores. E eles existiam, fruto das visitas de avós, padrinhos, tios e amigos.
Mas não rivalizavam com a intimidade de ver o patriarca produzir e regalá-los
com suas obras. Era o afeto possível, na educação convencional dos anos 1950,
1960, sem espaços para salamaleques, mas, no caso do guri, complementado por
uma convivência mais próxima, pela possibilidade de acompanhá-lo em situações
tipicamente masculinas, como as caçadas de tatu nos campos do Arroio Grande e
nos altos e baixos da Serra do Passarinho e da Serra dos Velleda.
O pai, a filha |
Duraram menos de
uma década essa proximidade e esse afeto de pai para os filhos. Nas
circunstâncias da vida, um lar desfeito representou o completo afastamento e
algumas imposições eternas: entender os porquês de tamanha ruptura, tentar
subvertê-la superando orgulhos em busca de uma proximidade (im)possível e
assumir, desde infante, o lugar do ausente – pela simples condição de único
varão no/do que sobrou da família.
No que sobrou da
família, o caminhãozinho ficou em segundo plano. Subjugou-o a necessidade
contínua de dotar a irmã mais velha e as mais moças da mobília com que
alimentaram seus sonhos de gurias. Caixas e caixas de embalagens de pasta
dental continuaram sendo transformadas em sofás, poltronas, mesas e cadeiras
para famílias completas que permaneceram no imaginário delas por muitos anos,
ainda. Ainda que por obra de um artesão menos talentoso.
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Nikão Duarte é porto-alegrense de
nascimento mas cacimbinhense(*) de origem e coração. Jornalista (ComEfeito
Comunicação Estratégica), professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos - e pesquisador.
(*) Gentílico dos nascidos em Cacimbinhas, nome original do município gaúcho de Pinheiro Machado.
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