Luís Antônio, álbum da família |
Meu irmão me
deixa
Leandro Maia (*)
No caso do Luís Antônio, ou Totôto, como era seu apelido familiar, esta afirmação tem muitos sentidos. Sua morte prematura, aos 47 anos, vítima de um câncer fatal, causa um vazio enorme. Mas o verbo "deixa", também tem outro significado. Deixar também significa ficar.
A primeira coisa
que meu irmão me deixa é o violão. Ser músico, pra mim, em muito se deve muito
aos momentos em que meu irmão tocou violão na minha frente quando eu era bebê.
Nasci em 1979, e em 1982 a família mudou-se para Porto Alegre, sob a trilha
sonora de Kleiton & Kledir:
"vou pra Porto Alegre, tchau." No mesmo ano de 82, meu irmão
torna-me tio da Carolina. Ele, pai com 17 anos e eu, tio com três. Contam os
mais velhos que eu aplaudia enfaticamente preso à cadeirinha de comer quando
ele tocava o violão, ainda em Caxias do Sul ou Bento Gonçalves – cidades onde
moramos antes de POA. Minhas irmãs tocavam piano e meu irmão, violão. Escolhi o
violão. Junto com as seis cordas, herdei de meu irmão um intenso repertório, de
Villa-Lobos a Nelson Gonçalves, de Almôndegas e Piazzolla, de Beethoven a Pedro
Ortaça.
Meu irmão
tornando-se pai aos 17 anos, tornou-me tio aos 3. Herdei de meu irmão também,
de certa forma, uma velhice e precocidade na vida. Quem me conhece jura que
pareço mais velho. Quem me conhece mais de perto tem certeza. Mas meu irmão era
a precocidade em pessoa, na verdade um reflexo de sua melancolia, de sua alma
velha, se sua mente privilegiada. Aos vinte e poucos anos, cantava tangos nas
casas noturnas em Porto Alegre, com preferência ao Recanto Latino, de Nina
Moreno, que tive a honra de conhecer numa das noitadas ao lado do meu irmão,
anos mais tarde. Tivemos algumas memoráveis noitadas. Cantar tango e Nelson
Gonçalves, para um cara de vinte e poucos anos, nos anos 80 era praticamente um
atestado de antiguidade. (Hoje o tango renasce em jovens intérpretes, mas na
época era outro papo). Com meu irmão comi espinhaço de ovelha em sexta-feira
santa. Até hoje minha mãe não sabe desse sacrilégio. Com meu irmão fui em meu
primeiro bar noturno para ouvir música, o Bluejazz, na Cidade Baixa. Trabalhar
cedo, dormir o mais tarde sempre que possível. Viver o dia e a noite ao máximo.
Herdar toda esta
velhice, significa também herdar um bom grau de ironia e acidez – que fiz
questão de ir domando com o tempo e que venho mantendo sob certo controle, na
medida do possível. Meu irmão, que tinha um cérebro mais acurado do que
qualquer PhD, cultivava um ph baixíssimo em termos de humor – o que caracteriza
uma acidez considerável. Gostava de vinhos encorpados, da mesma forma. “Parei
de fumar cigarro”. Que bom, comemorava com os meus botões. “Passei ao charuto”,
completava a frase com seu sorriso de canto de boca, já propenso ao fumo
anatomicamente, como se fizesse parte de sua constituição física. Não foram
poucas vezes em que ouvi recados na secretária eletrônica entrecortados por
suspiros de fumo de cigarro. Era uma espécie de marca, pausa retórica, com ares
de Quintana.
Mas era
igualmente comum ver este sorriso abrir-se largo ou em gargalhadas. Era um
excelente piadista. Mas das piadas dele, sempre com um grau de sobriedade, um
humor bastante seu. Sagaz. Isto eu, definitivamente não herdei. Meu irmão me
deixa seu senso de humor, sem dúvida, mas meu reflexo humorístico é bastante
retardado. Acabo eu sendo mais chulo, na verdade. As histórias e causos que meu
irmão contava costumavam entrar para o dicionário da família. Era bastante
comum que nossas piadas ficassem no ar, incompletas ao público, consumidas
somente no olhar. De certa forma, o humor era um dos artifícios de meu irmão à
cumplicidade. O humor era uma porta de entrada no seu denso pensamento, e ao
mesmo tempo um truque para desviar de assunto, quando não queria falar de algo.
Humor nos seus diversos matizes: a sagacidade, a leveza, a ironia, a sátira, a
inocência, a ternura. Então, sentir falta de meu irmão é paradoxalmente sentir
falta tanto de sua melancolia, quanto de seu humor. Sentir falta de sua voz e
de seu silêncio, de suas respirações. Quando até o silêncio faz falta é quando
mais dói. “Um amigo calado, desses que lêem versos de Horácio”, conforme
Drummond, em “A Bruxa”, um de seus poemas preferidos.
Meu irmão me
deixa muitas leituras e desejos de leituras. Dele herdei Marx, Fernando Pessoa,
Quintana, Vinícius, Drummond mil vezes. Esta é uma herança sagrada. Herdar Dom
Quixote. Herdar “A Flor e a Náusea”, “A Bruxa”, “Os ombros suportam o mundo” e
outros tantos poemas de Drummond recitados com maestria é o mesmo que herdar a
arte de fazer fogo, de forjar uma espada ou cozinhar um prato milenar de
família. Herdar seus comentários sobre Getúlio Vargas, Júlio Cesar, Napoleão e
General Lott. Não há como explicar o sabor do amendoim com chocolate – ou
carapinha, como chamamos lá em casa – feito por minha mãe. O máximo que posso
dizer é que minha passagem pelo primeiro grau num colégio de freiras foi
inesquecível às professoras não por causa de minha dedicação como aluno, mas
pelo sabor e cheiro das carapinhas feitas pela dona Antonieta nas festas
juninas. O privilégio de ouvir um poema do Luís é equivalente ao degustar as
inexplicáveis carapinhas. Algo somente possível pela experiência vivida,
intransferível, inesquecível. Não há
como abrir um livro sem os dedos do Luís não apareçam em suas páginas. Eu não
sabia que as carapinhas eram tão maravilhosas assim. Eu não sabia que meu irmão
era o melhor recitador de Drummond até ver outras risíveis interpretações de
gente famosa, que consegue transformar Drummond num colunista de meia pataca. A
poesia era quase mística em meu irmão.
Herdei milhares
livros que não li, uma faculdade de direito que não completei. Herdei um futuro
que ficou pra lá. Ainda bem. Até isso é herança boa. Herança de possibilidades.
Herdei lugares: Brasília, Belém do Pará, Pirenópolis, Goiás Velho, São Paulo e
Rio, de certa forma Buenos Aires e, até mesmo Paris – que ainda não conheço,
mas não terei como colocar os pés por lá sem seguir o rastro do meu irmão, que
palmilhou cada pedra. O mesmo ocorre com outros tantos lugares. Meu irmão me
deixa o sabor das viagens, o cheiro das pessoas. Meu irmão me deixa Tucupi,
Maniçoba, Surubi, Cachorro do Rosário, Bauru do Trianon, amplo espectro de
churrasco e peixes, sorvetes maravilhosos e pastas diversas. Legou-me
restaurantes, cheiros e lugares.
Minhas primeiras
viagens sozinho foram obra de meu irmão. Aos 16, 17 anos poder vagar solto por
alguns dias em lugares desconhecidos é como herdar o próprio mundo. Herdar o
mundo palmo a palmo, passo a passo, como quem tateia no escuro. Essa herança de
mundo é a que fica de verdade, é uma a conquista que coloca o Rio do Peixe ao
lado de qualquer Eufrates e o Pouso do Sô Vigário no nível de um Copacabana
Palace. Viajar na caçamba de uma caminhonete entre Pirenópolis e Goiânia.
Caminhar em Belém do Pará do Theatro da Paz até a Estação das Docas, da Casa
das Onze Janelas até o Mangal das Garças. “Tens que conhecer o Recife”. “Minas
é o Brasil”. Entre tantas outras referências a terras e pessoas. Viagens onde
me encontrei. Meu irmão me deixa também lugares onde ainda não fui.
Ouvir música,
abrir um livro, comer com prazer. Presentear os outros. Isto era meu irmão. Se
o mano agora é perda, ele também me deixa a dádiva. Se meu irmão agora é
tristeza, é porque me possibilitou vida. Desde presentes materiais, alguns
insanamente caros, até terapia, meu irmão me deixa minha alma. Se hoje me pego
imóvel diante da dor, meu irmão me deixou a inquietude e perplexidade ativa
diante do mundo. Tocando em frente.
“Chega um tempo
em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”. Um dos seus versos
preferidos de Drummond ainda ressoa a cada lembrança. “Teus ombros suportam o
mundo, e ele não pesa mais do que a mão de uma criança. As guerras, a fome, as
discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue, nem todos
se libertaram ainda.” “Chega um tempo em que não adianta morrer”. Essa leveza
densa é um legado diante do mundo de hoje.
“El mundo fue y
será una porquería”, já sabemos. Um cambalache insolente, como diria seu tango
predileto. Mas também “uma aventura errante”, conforme Vinícius de Moraes,
outro dos preferidos do Luís. Chega um tempo em que a vida é uma ordem.
Enquanto vivemos nossa vidinha, seguimos ainda descobrindo e desvelando
legados. A vida, apenas. Grande e pequena. Intensa e curta. Que a memória do
Luís siga como um farol que nos engrandeça, que nos afaste da mediocridade e
que nos permita viver amores, sabores, humores com toda a densidade que ele nos
revelou existir. Te amo, velho.
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Publicado num domingo, 15 de
abril de 2012, em PALAVREIO
Leandro Maia é Músico e Professor da UFPel. Recentemente lançou os CDs Mandinho e Palavreio, premiados nacionalmente.
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Um comentário:
Sem palavras meu querido primo ! É muita saudade !
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