Aquarela da autora |
Flávia Maria Schlee (*)
Pai, mãe e duas gurias em
torno de quatro anos. Família pacata com uma casa que tinha um pátio e, nele,
apenas um coqueiro. Seus frutos eram coquinhos cabeçudos, saborosos e fáceis de
carregar. Eles despertavam apetites não só de comer, mas também de posse.
Um dia, apenas uma das
gurias conseguiu apanhar uma quantidade bem grande de coquinhos cabeçudos. Dona
Inveja apareceu, então, com um punhado de terra. Um punhado que nada teria de
estranho se não tivesse sido jogado no rosto da pequena conquistadora.
Até
aí, o que teria sido apenas uma desavença comum à infância, mudou um destino. A
pedra pousou dentro do ouvido da pequena que, de conquistadora, virou vítima! O
Vô, que vivia sossegado em suas viagens de poltrona, foi convocado a prestar
socorro e decidiu prontamente os procedimentos. O Ford 57 seria a peça chave da
operação “pedra no ouvido” junto com muitos chicletes e um travesseiro. A
menina, agora elevada ao centro das atenções, ouviu também que o pai ia guiar o
auto pela estrada velha que ligava a pequena São Lourenço a grande Pelotas. Até aí, nada parecia especial para a guria. A
poeirada e os infinitos buracos ela já conhecia. Tudo bem com a poeira e os
buracos, ela ia fazer a viagem olhando a vista.
Porém esse não era o socorro
planejado. Ela e sua pedra no ouvido, deveriam fazer o percurso de auto
(automóvel), pelos piores buracos. Quando soube que iria deitada no colo do seu
vô, com seu travesseiro de penas e mascando chicletes desejou sinceramente que
a pedra, tão bem alojada em seu ouvido, jamais quisesse sair de seu pouso.
Nunca havia sentido tamanha segurança de um pai guiando e um vô cuidando!
Ainda que não possamos
calcular o tempo preciso, em um determinado momento a guria teve que abandonar
a plenitude de ser tão especialmente tratada e reconhecida. A pedra saiu em
obediência aos trancos e barrancos do Ford 57 na velha estrada. Um cascalho se
juntou a outros e o grande feito tomou seu tamanho diante da própria vida
costumeira. Só a guria ficou com o sentimento da lembrança!
Assim, a menina vitimada
pela inveja e salva pelo vô, confirmara o grande orgulho que sentia por ele e
suas incríveis soluções. A vida continuava sem grandes malabarismos e sem a
pedra que fora tão preciosa por tão pouco tempo, segundo os “espectadores
sempre julgando de fora”. Eis que um belo dia, o Ford 57 foi trocado por um
Fusca e, talvez por ironia, a tal troca aconteceu justo com a morte do Vô.
Diziam para ela que agora
seu Vô se transformara em uma estrela. Mas, para ela, essa imagem de um avô
como estrelinha no céu era uma bobagem! Como assim apenas uma estrelinha (?)
martelava a menina. De tanto martelar um dia ela ouviu uma voz de pedra
preciosa. Como um brilhante fragmento ela lhe segredou que com o Fusca não
haveria jamais espaço suficiente para a grandeza de seu Vô e muito menos para
ela se espichar no seu colo. Sim, era bem verdade! Então a menina teve que
aceitar a troca e decifrou o enigma dos tamanhos e seus espaços. Talvez com o
Ford 57 houvesse ainda uma obediência de tamanho em que cabiam avô e neta. Mas
com o Fusca isso já não teria cabimento! Em um Fusca, meu vô não vai caber
comigo!
Com espanto e dor, a
menina compreendeu naquele momento que, de fato, agora ela deveria se preocupar
muito e cada vez mais com tudo aquilo que vivesse de tamanhos. O que fazer, se
ela ouvia seu vô pedir socorro para não ficar apenas como mais uma “pequena”
estrela no céu (?). Foi assim que, por artifícios que seu vô havia lhe
ensinado, transformou-o em um Fusca!
Em meu vô Fusca, murmurava a guria, qualquer tamanho poderia entrar,
qualquer estrada seria a “nossa” e ele ainda saberia tudo que fosse “de
ouvido”. Tal era a garantia de um Vô Fusca para mim. Ele sempre soube que meu
coqueiro era um butiazeiro e com ele aprendi também a praguejar, com doçura,
que meus ouvidos não eram ser pinico e que havia pedras que fechavam para
sempre os ouvidos dos cabeças duras e invejosos e que água mole em pedra dura
tanto bate até que fura e etc.
Porém, eu que só agora
posso falar, não podia imaginar que um Fusca pudesse sair de linha, que o lugar
de quem morre estaria na memória e que a imortalidade só pode se alojar em
seres vivos que são capazes de olhar para o céu e se comunicar. Eu juro por
todos os avôs e avós, se deste modo me permitirem, que os sonhos estão sempre
em aberto.
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(*) Flávia Maria Schlee nasceu em Pelotas, morou quando criança em São Lourenço do Sul, e reside atualmente no Rio de Janeiro. É graduada em História pela PUC/RJ, fez Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Doutorado em Letras pela PUC/RJ. É professora do Departamento de História da PUC/RJ. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, atuando nos temas de Literatura, Literatura Antiga e Medieval, História, ensino de História, Heródoto, Homero e Tucídedes.
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