16 de julho de 2024

Desapega que faz bem

 

O autor, fotografado por Cláudia Rodrigues

Geraldo Hasse (*)

Durante mais de vinte anos, conservei no guarda-roupa um lote de blusões de lã raramente usados em algum inverno em cidades em que morei – casos de Ribeirão Preto, Vitória e São José do Rio Preto, situadas em torno do Paralelo 20, onde é raro a temperatura cair a 15ºC. Daí que estavam em estado de seminovos os tais pulôveres quando se deram as terríveis enchentes no RS, e aqueceu-me o coração colocá-los no pacote de doações entregue ao Correio em maio de 2024. 

Desde então, diante da aparente iminência do fim do mundo, cresceu o sentimento de desapego no meu pobre mundinho particular. Roupas, que muita gente aceita, já não sobram, mas aqui no meu tugúrio há uma mercadoria que nem todo brasileira valoriza: livros. Há mais de meio século carrego pilhas desses objetos de papel e tinta (e nunca me esqueço da minha primeira compra literária: com 14 anos apliquei todo meu dinheiro -- 5 cruzeiros novos – pra levar pra casa o volumoso “Contos e Novelas” de Voltaire, edição da velha Livraria do Globo).

Depois de tanto comprar e ganhar livros, a mim bastaria hoje manter umas 50 obras literárias, entre contos, ensaios e romances, mas até agora persisti em guardar um milhar de títulos (alguns em duplicata) que raramente são abertos – aliás, o Voltaire acima não mora mais comigo.

Seria prático, portanto, doar o que estiver sobrando. Foi assim que passei a ensacolar alguns volumes entregues em centros comunitários. É um descarte prazeroso, mas não isento de algum remorso (diante dos autores, talvez). Antes de cada doação, porém, me obrigo a um exercício de comiseração: pego cada volume, dou uma folheada, checo os créditos, confiro alguma frase sublinhada e tento recordar quando, onde, como e por que esse livro chegou e se tornou um amigo silencioso e servil, mas nunca inerte.

Dizer adeus a um livro é tão difícil que, não raro, após um manuseio de minutos, acabo por devolvê-lo à estante, para que permaneça mais um tempo à mercê de uma releitura ou de um simples afago na lombada. Há livros cujo descarte seria mesmo uma espécie de traição. Fazem parte dessa lista aqueles com dedicatória. Parece absurdo, mas no século passado ganhei um livro em que o autor, renomado repórter policial, escreveu, eufórico: “A você, xerife das quatro estações, o abraço do Pena Branca”. Mal o conhecia, mas compreendi o significado de um livro na vida de uma pessoa: são muitos anos de trabalho, mil perguntas em noites insones etc. 

Não pretendia alongar-me nesse assunto de livros e roupas, mas não posso deixar de falar do transtorno que me acompanha desde que me tornei um escriba profissional: a mania de guardar caixas contendo agendas, cadernos de anotações e documentos (muitos em formato de livro) acumulados ao longo do tempo. São papéis que registram entrevistas, viagens e frases sem valor para quem olha de fora (há até uma caixa de fitas K7, embora já não exista o respectivo gravador). No entanto, basta abrir qualquer um desses fragmentos da prática da reportagem ou de momentos de estudos para concluir que muitos episódios ou personagens ali anotados têm uma remota ligação com a realidade de hoje. Mal comparando, são como espoletas ainda aptas a fazer crepitar o fogo na lareira. Por exemplo, achei um caderno onde anotei aulas de sociologia do bravo professor Florestan Fernandes recém-chegado do exílio em 1976 – numa das folhas, consta até um desenho tipo caricatura da cara dele. Claro que esse caótico doc.edu do auge da ditadura não vai para o fogo nem para o lixo.

Enquanto dou uma última espiada nessa papelada descartável antes de entregá-la às chamas, concluo que não há forma mais original de desapego do que incinerar manuscritos guardados como salvaguarda da própria memória. Eis então que recebo (de graça) a visita de uma frase gravada nos anos 1970 na parede de uma espelunca em Paragominas: “Tudo enfada, só a variedade recreia”.

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Geraldo Hasse é jornalista e escritor; trabalhou como repórter e editor pelo Brasil afora em diversos veículos do jornalismo, publicou vários livros, e atualmente mora em Santa Catarina. Ah, e me regalou com o Venâncio Xavier, leia aqui:

https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2021/01/venancio-xavier-ou-o-poncho-voador.html

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