12 de janeiro de 2012

O esculacho do esculápio


O esculacho do esculápio
Prece
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Marcelo Freda Soares
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Em um terço de meu tempo, somadas todas as horas, inclusive as que deviam ser de sono: sou médico. Normalmente este fato não se evidencia porque uso a escrita e fotografia justamente para arejar tão árdua jornada, mas, como  não há como evitar de misturá-las, também divido algum relato, afinal, é daí que vem meu mais diverso e inusitado contato humano.

Hoje não dormi nem duas horas. Vejo o dia chegar pela luz que entra das altas janelas, tão altas como inacessíveis e sem cortinas, o que frustra os poucos  momentos que poderiam ser de descanso.

A madrugada foi de correria, são tantos "deita e levanta" que por fim me rendo, e recosto o corpo breve quase sentado e sem sequer tirar os sapatos.

Algumas pessoas perdem o sono, percebem o que não existe, ficam com medo da vida, ficam pensando na morte; outras brigam com os companheiros, circulam em volta do umbigo ou simplesmente não resistem,  precisam dividir seus enfados, e para isso procuram um pronto-socorro.
Confesso que prefiro bloquear um infarto ou tirar a dor de um cálculo entalado do que, a estas horas, ter que incorporar  o terapeuta. Confuso, posso dar maus conselhos ou até dizer algo grosseiro.

Era perto das quatro e meia e a linda moça vem com a companheira.  Ambas estão de olhos inchados. A paciente conta que estavam rezando, isso já há algumas horas, tentando evitar  sair de casa desfilou um rosário inteiro. Sofre de síndrome do medo, tem pânico de enfrentar a noite, do dia também guarda receio. Pelo jeito divide o malgrado, pois enquanto lhe escuto com filtros, a amiga continua rezando. Minha formação foi católica, identifico o "salve rainha" - "vida, doçura e esperança nossa, Salve! A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva..." - sussurra em  acelerado ritmo, e associando a uma cena a filme italiano, não consigo controlar certo riso.

"Afinal o que esta se passando?" Responde que esta apavorada: trabalha em um grande banco e esta sendo muito cobrada, depois mistura sintomas, diz que tem problemas em casa, tem uma dor no estômago, fala da mãe e tem arcadas. Repete  a ladainha de queixas que mesmo longas não levam a nada. Diz que faz tratamento, abre a bolsa e despeja  cartelas. São tantos calmantes e hipnóticos, antidepressivos e placebo que penso o que sobra para mim e não vejo o que possa ser feito. Nenhuma chance de alívio a não ser ouvir os relatos, penso na minha cama vazia e na noite atropelada. Procuro melhor abordagem, quem sabe deixa-la dopada, queria eu um sono tranquilo, meu dia será  de ressaca, sem força para este desafio entro na prece afinada:

    Salve, Rainha, mãe de misericórdia,

    vida, doçura, esperança nossa, salve!
    A vós bradamos os degredados filhos de Eva.
    A vós suspiramos, gemendo e chorando
    neste vale de lágrimas.

    Eia, pois, advogada nossa,
    esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei,
    e depois deste desterro mostrai-nos Jesus,
    bendito fruto do vosso ventre,
    Ó clemente, ó piedosa,
    ó doce sempre Virgem Maria

    Rogai por nós santa Mãe de Deus

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    E mande estas loucas para casa ...
...............................

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Marcelo Freda Soares
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8 comentários:

Vera Luiza SVaz - maudepoesia.blogspot.com disse...

Leio o texto do médico/escritor e devo - este é mesmo o verbo - manifestar minha idéia a respeito. Tenho por hábito, adquirido ao longo do caminho por estas bandas terrenas, quiçá em outros planos anteriores, não sei, refletir... Vivo, convivo e faço minhas reflexões diante de tudo de que participo e perante tudo a que assisto...
Há algum tempo, cheguei à conclusão de que a humanidade sofre de um mal terrível, ao qual a medicina, infelizmente, não encontra remédio: valores equivocados, engenhosa e gananciosamente estimulados pelos hábitos da "vida moderna", onde muitos sofrem, se perdem, para que uns poucos maldosamente se beneficiem... Tristes tempos, caro autor, tristes tempos...
Resta-nos, então, como ex-alunos do Estadual, que não se entregam diante das intempéries,e porque ainda nos resta um pouco de capacidade reflexiva e de entendimento, tentar enxergar o que está acontecendo e, a despeito da dificuldade para isso, "nadar contra a maré" com atitudes serenas, mas fortes, diante das aberrações que se presenciam todos os dias... Abraço!

Léli disse...

Muito bom! Gostei! Parabéns Marcelo, muito legal teu relato!
Beijão Vaz

Ana Lúcia disse...

Divertida e bem escrita crônica, bem a cara do Marcelo.

Maribel disse...

Excelente texto! Dá pra imaginar a aflição do doutor! Que tenha noites melhores para que possamos sempre contar com sua acuidade na escrita de novos textos! Congratulações ao Blog por contar com tão bons colaboradores!

Maribel disse...

Excelente texto! Dá pra imaginar a aflição do doutor! Que tenha noites melhores para que possamos sempre contar com sua acuidade na escrita de novos textos! Congratulações ao Blog por contar com tão bons colaboradores!

Camafunga disse...

Mais uma vez com prazer cedo para o Vaz um dos escritos de meu Blog, bem como as imagens. Para quem me conhece e acompanha sabe que meus despretensiosos textos são "crônicas" e como crônicas nem sempre espelham vivências ou realidades. Digo isso porque fora do contexto pode parecer que sofro de algum distúrbio de personalidade ou frieza de afeto, o que não é verdade. Sem querer causar polêmicas, mas não podendo deixar de comentar, como autor, discordo absolutamente do comentário de Vera Luiza - que também é Vaz mas não sei se é parente do meu amigo. Como bem disse, e isto é fato, vivo um terço dos meus dias de meu único e sacrificado ofício, e assim como eu, convivo com tantos outros que se desdobram pela sobrevivência em um pais que não valoriza médicos, professores entre outros, que tem que lutar efetivamente contra a maré do preconceito e do desconhecimento e que, mesmo assim, ainda conseguem se sentirem felizes e realizados porque lidam diretamente com a humanidade, a mesma que se apresenta com mais ou menos caratér independente da atividade que exerçam.

Vera Luiza SVaz - maudepoesia.blogspot.com disse...

Caro Marcelo, como bem disse alguém, não me lembro quem, no momento, a palavra, muitas vezes, não explica nada... Pois concordo em gênero, número e grau com o nobre autor e, em nenhum momento, o desconsideraria, nem a seu texto que achei genial e, desde logo, evidentementer, entendi ser uma crônica, gênero, por mim, muito apreciado.
Portanto, humildemente, lhe peço desculpas, se fui indelicada, se o ofendi.
Creia, nunca tive esse propósito.
Desculpem-me, também, o Vaz e seus leitores a quem tenho em alta estima! Abraço!

Camafunga disse...

De jeito algum, o apressado fui eu que li o comentário -ai sim entre um atendimento e outro- e na emoção subi no caixote e me passando no discurso, tanto que, imediatamente mandei uma mensagem para o Vaz solicitando, se assim entendesse, que não o publicasse. Em uma segunda leitura mais calma compreendi e mais do que isso, concordei com o que foi escrito por ti. Fica assim: um mal entendido e uma possibilidade de dialogo. Obrigado!