8 de junho de 2013

Ora agora, vira - II, A faca no engraxador

 
Restaurante Sabores de Goa

Ora agora, vira - II
A faca no engraxador
Antunes Ferreira

O homem vinha do Luxemburgo pela primeira vez depois de trinta e quatro anos, era pedreiro, o que justificava esse tempo, além disso era da Província, mais precisamente de Bragança, Trás-os-Montes. Isso era a questão pois fora para aquele pequeno País da União Europeia, que então ainda se chamava CEE, e não conhecia Lisboa. Muito menos o Bairro das Províncias Ultramarinas. No aeroporto da Portela, deu ao motorista a morada do primo Manuel Francisco que morava lá na Rua do Zaire, 11, por cima do restaurante «Sabores de Goa» dissera-lhe que nunca se chamara Bairro das Províncias Ultramarinas, pois fora sempre o Bairro das Colónias. Então o Salazar não lhe mudara o nome, tudo que se dizia Colónias para Províncias Ultram…O primo Manel Francisco, explicou-lhe com um sorriso nos lábios que o ditador não conseguira mudar o Bairro das Colónias.

O bragantino (sempre lhe cheirava a esturro, Bragança era Bragança porquê bragantino?) de nome João Miranda foi alojar-se na pensão Flor, à Almirante Réis, depois do primo Manuel lhe explicar os transportes que devia utilizar, as paragens dos mesmos e essas coisas todas. Também podia viajar de metro ou de eléctrico  No dia seguinte apanhou o metro para o Rossio, pois queria confirmar no seu banco (seu, deles, claro pois nunca teria um banco, apenas os dos jardins…). Estava tudo certo, o que enviara do Luxemburgo para construir uma casita lá na terra como emigras.

Como se espantou quando chegou ao Rossio, uma bela praça com um belo edifício com colunas e tudo e depois explicou-lhe um preto que por ali andava com outros pretos, que era o Teatro Nacional D. Maria II. Abriu os olhos e andou. Mas o que mais lhe deu nas vistas eram os engraxadores que ali estavam com os seus instrumentos para o desempenho da sua profissão, havia dois senhores que poliam os sapatos. E ficou a ver a habilidade de engraxar os sapatos de puxar-lhes o brilho com um pano esticado passa e repassa. Resolveu tirar-lhes uma fotografia, pediu-lhe licença e já está! Resolveu dar um passeio a pé, seguindo as ruas e praças como o primo lhe indicara.

No dia seguinte voltou ao Rossio e aos engraxadores e começou o busílis da questão. Um deles, o Nando Serrador, a quem perguntara uma qualquer coisa, de resto não era ela de pequena monta, dissera-lhe que um colega, o Chico do cais do Sodré, fora encontrado com uma faca no peito, ou seja fora assassinado. A Judiciária já tomara conta do acontecido, porém ele, João Miranda achava, recordou-se de um crime no Luxemburgo que a Polícia de Investigação não conseguira resolver um assassínio e fora um dective privado que desfiara o caso à mealha num crime que ali houvera, pensara que seria melhor um tipo de tal quilate. Assim fizera fora à lista telefónica, páginas amarelas secção DECTIVES PRIVADOS e escolhera à sorte um nome de um tal Miguel Castanho com o escritório na Rua da Prata, 128, 2º esquerdo.

Por isso estava eu, Miguel Castanho, que recebi no meu escritório, onde lhe perguntei qual era o caso que o levara ali. O senhor Miranda, antes mesmo de relatar-me o ocorrido, disse-me que tirasse o senhor, pois era simplesmente o Miranda. Assenti no Miranda e então ele começou a contar-me o caso do engraxador que fora encontrado com uma faca no peito. Se eu deslindasse o crime ele pagar-me-ia… Nestas coisas o segredo é a alma do negócio. Aceitei o encargo que me pedira, disse-lhe que ia começar a investiga-lo e indiquei-lhe o preço que levaria pelo meu trabalho. Achou o preço muito elevado, era carote para as suas posses, mas que já se metera no caso, iam-se os dedos, mas ficavam os anéis, e disse-me que se desenrascaria e arranjaria o pilim, talvez com a ajuda do primo, e portanto que eu seguisse em frente. Assim fiz!     


Despedira-me da minha adorada Vanessa, tínhamos comprado uma vivenda no Restelo (pois a vida corria-me bem e ganhado uns bons pilins) já entende o que se passou, ou seja foi um beijo, língua com língua e só parámos porque eu tinha que fazer. Voltei ao Rossio, cheguei-me a um dos engraxadores, que se chamava Nando Serrador, poliu-me me os sapatos, e começámos a conversar, ele era um falador sobretudo do futebol e era um benfiquista, Eu era sportinguista, por isso entrei a brincar, ele era um lampião ferrenho, eu, sendo um leão, não alinhava nessas exaltações.

No meio da conversa repetiu-me o que revelara ao Miranda, ou seja que outro engraxador chamado o Zé do Cais do Sodré aparecera debaixo dos arcos do Terreiro do Paço (que era onde dormia, a crise estava fortíssima e a austeridade era uma chatice), com uma faca cravada no peito, uns bons quatro centímetros. Fiquei intrigado como se soubera, fora um transeunte que trabalhava no Ministério das Finanças que dera o alarme e participara à PSP e depois viera a Judiciária e novamente encontrei-me com o Inspector Xavier Pintado, que ao ver-me comentou com um ar azedo, puta de coincidência. Eu retorqui-lhe o habitual, chegara primeiro…Ele franziu o cenho e de que maneira, no fundo dávamos-mos  bem, mas fingíamos para disfarçar. Vieram os gajos naturais na coisa, uma ambulância para levar o corpo até ao edifício onde se fazem as autópsias que é o Instituto de Medicina Legal, na Capital e onde ficam depositados os corpos depois dela à espera que alguém venha identificá-los.

Pareceram-me estranhos todos os contornos do caso e por comecei a averiguar. Voltei uma vez mais ao Rossio, indicou-me o mesmo engraxador que havia um sujeito, de nome Vicente Caldeira, que morava na rua da Trindade, mas não sabia o número. È fácil, mas vou-me desenrascar e dei-lhe dois euros para lhe pagar a informação e ele agradeceu-me. Fui até à rua e perguntei no restaurante que por ali há, o Trindade, o número da porta de um cliente habitual, o senhor doutor Manuel Montenegro. Era o número 16, 2º Direito. Fui visitar o médico, ao seu consultório, mas como não marcara a consulta, tive de esperar um bom bocado. Finalmente duas horas depois entrei e ele convidou-me a sentar-me. Então de que se queixa?

Respondi-lhe que não, que somente queria perguntar-lhe se conhecia o Zé do Cais do Sodré. Não teve a menor dificuldade em responder-me e perguntou-me se não era o tipo que levara uma facada no Terreiro do mas por que bulas tinham-lhe enterrado uma faca no peito? Aí é que estava o busílis. Mas deu-me o nome e a morada de um advogado, o Dr. Ravi Mascarenhas que era goês. Ali me desloquei, voltaram as muitas horas de espera já sabem porquê… Lá comecei a mesma ladainha que não o fora visitar para me dar uma consulta ou mesmo uma opinião, mas muito simplesmente queria saber onde parava pelas tardes o engraxador. Mas por que queria eu saber? Porque lhe haviam dado uma facadela no peito. Esbugalhou os olhos pois que não sabia nada de tal ocorrência. Era um tipo porreiro, por que raios lho haviam feito? Era isso mesmo que eu averiguava. Recuperado do espanto, retorquiu-me que tinha de perguntar a uma enfermeira do Hospital São Francisco Xavier, de seu nome Noémia da Conceição porque ela devia saber.

Já estava cansado de tantas deslocações, mas que remédio… a vida tem destes ossos que é preciso roer. Recordei-me então que, apesar de todas as dificuldades, eu devia seguir em frente. Portanto, e de acordo com o Nando que continuava a ser-me muito útil e me dava o incentivo para que o criminoso fosse punido e com pena severa, ele espetar-lhe-ia uma naifa também, ao que lhe atirei quemalandro que é malandro não estrilha, muda de esquina, e que ninguém podia fazê-lo. E recordei-lhe que o julgamento de Salomão não era para ali chamado. Resumindo e concluindo: meti-me no meu carro e fui procurar a Noémia da Conceição no hospital que ficava no Restelo.

Entrementes o Serrador (que se transformara num verdadeiro secretário para mim) telefonara-me dando-me a informação de que o Inspector estava pior do que estragado por causa das minhas idas e vindas, o que lhe parecia muito suspeito. Por isso já tinha um mandato de captura com o meu nome estampado. Eu que não achava piada ir para a grelha, disse para mim mesmo que tinha de deslindar o crime o mais depressa possível. Portanto, dei corda às sapatilhas e cheguei ao Hospital de S. Francisco Xavier. Coincidência lixada: Xavier da Pê Jota e Xavier hospital.

Noémia da Conceição que vinha a sair pois terminara uma noite de serviço, usava uma minissaia muitíssimo mini e um top com a mesma dimensão. Era uma brasa e ela sabia que era. Aproximei-me dela e convidei-a para umas bóbidas, ao que ela aquiesceu. Fomos até um café bar próximo, sentámo-nos numa mesa, ela pediu um café cheio em chávena escaldada e eu um Black Bushmills com água Castello e muitas pedras de gelo.

Enquanto aguardava-mos que o empregado nos trouxesse o que lhe tínhamos pedido, informei-a do motivo que me levara ali, ou seja do Chico do cais do Sodré esfaqueado no peito, debaixo de uma arcada do Terreiro do Paço. Esbugalhou os olhos, tremeram-lhe os lábios carnudos, não podia acreditar. Porém eu disse-lhe que fora assim mesmo, sem tirar nem pôr. Contou-me que fora amante do Chico, mas que acabara a relação porque ele era muito ciumento. Perguntei-lhe há quantos meses não se viam. Carregou o cenho, você está a considerar-me suspeita? Abanei a cabeça, nem sim nem não.

Entretanto ela roçara-me a minha perna e inclinara-se sobre a mesa, para me exibir descaradamente as mamas, nem sequer soutien trazia a mesmo tempo que me pestanava e me piscou o olho. Se você quisesse pois é um belo homem, poderíamos dar um salto a minha casa pois moro aqui perto. Disse-lhe que tirasse o cavalinho da chuva, pois a minha resposta era não. E voltei a ataca-la: há quanto tempo não via o Sodré? Vai para uns dez meses, mais coisa menos coisa. Agora acentuavam-se as minhas suspeitas. Inclinei-me para ela, dei um murro na mesa: matara-o mesmo, tou certo!?!?!? Não diga disparates, retorquiu-me a menina, mas com um olhar a modos que esgazeado, tremiam-lhe as mãos.

Julga-me burro? Sublinhei eu. Porque o matou? Eu não matei ninguém… Muito bem, eu fico na minha e você na sua enquanto não chegar a Judiciária… Mas ela estava assustada, mesmo assustadíssima e confessou-me que o assassinara pois o Chico começara a chantageá-la pois ela tinha um affair com um médico otorrinolaringologista lá do hospital. Saquei o meu mini gravador que estava na minha algibeira. Tinha tudo registado. Desatou a chorar, Não lhe liguei peva, pois não merecia que eu me apiedasse dela.

Nisto apareceu o Pintado que me seguira e tinha ouvido tudo. Trazia o mandato na mão, mas meteu-o no bolso. Você é um gajo fodido, um dia hei de apanhá-lo. Mas por agora, desande. Mais uma vez esta merda é uma porra! Repetiu a graça de me apanhar com as calças na mão. Cave. Imediatamente. Sou bem mandado e bem educado, por isso abri.

O Miranda deu saltos de contente e passou-me um cheque de zeros mais do que combináramos pois o primo fora um gajo bué da fixe, não lhe emprestara a massa, dera-lha. Despedimo-nos, combinámos um jantar num dia destes. Disparei para a nossa casa. Avisara a minha Tânia do desfecho final e por isso ela abriu-me a porta envergando um negligé quase transparente ou mesmo transparente. O Miguelzinho já estava deitado por isso fomos como era nosso hábito até ao vale de lençóis e de outra coisa encaracolada enrolá-mo-nos e etc. e tal. Daí que passados três meses o puto esperava um mano ou uma mana que oxalá viesse saudável.
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Antunes Ferreira por ele mesmo: Jornalista, antigo chefe da Redacção do Diário de Notícias (1975/1991). Rádio: TSF e outras; TV: RTP1 e TV2. Cronista: A Bola, maior jornal desportivo; Elan, a primeira revista para homens; Correspondente das espanholas Tiempo, Interview, Gaceta de los Negocios e da RNE e da TVE. Política: candidato a deputado e Chefe da Redacçao do Portugal Socialista. 
Sou militante do PS, Partido Socialista, de Mário Soares. Antes, da ASP (1969). Lutei contra a ditadura desde a campanha eleitoral do Gen. Humberto Delgado (1958). Três vezes interrogado pela então PIDE. Etc... Dos livros escritos, o primeiro de ficção (Abril 2008): «Morte na Picada», contos da guerra colonial em Angola 1966/1968. Assessor para a Informação do ministro das Finanças, Prof. Sousa Franco, meu colega desde o Liceu até à Faculdade de Direito. Director de Comunicação da Comissão Euro (divulgação da nova moeda única). Dei aulas em duas universidades (privadas) em Lisboa. Gosto muito de leccionar e... os alunos diziam que gostavam de mim... Pelo menos, até lhes dar as notas... Imeile ou Imilio: hantferreira@gmail.com
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