Ora agora,
vira - II
A faca no engraxador
Antunes Ferreira
O homem vinha do Luxemburgo pela primeira vez depois de trinta e quatro anos,
era pedreiro, o que justificava esse tempo, além disso era da Província, mais
precisamente de Bragança, Trás-os-Montes. Isso era a questão pois fora para
aquele pequeno País da União Europeia, que então ainda se chamava CEE, e não
conhecia Lisboa. Muito menos o Bairro das Províncias Ultramarinas. No aeroporto
da Portela, deu ao motorista a morada do primo Manuel Francisco que morava lá
na Rua do Zaire, 11, por cima do restaurante «Sabores de
Goa» dissera-lhe que nunca se chamara Bairro das Províncias Ultramarinas,
pois fora sempre o Bairro das Colónias. Então o Salazar não lhe mudara o nome,
tudo que se dizia Colónias para Províncias Ultram…O primo Manel Francisco,
explicou-lhe com um sorriso nos lábios que o ditador não conseguira mudar o
Bairro das Colónias.
O bragantino (sempre
lhe cheirava a esturro, Bragança era Bragança porquê bragantino?) de nome João
Miranda foi alojar-se na pensão Flor, à Almirante Réis, depois do primo Manuel
lhe explicar os transportes que devia utilizar, as paragens dos mesmos e essas
coisas todas. Também podia viajar de metro ou de eléctrico No dia
seguinte apanhou o metro para o Rossio, pois queria confirmar no seu banco
(seu, deles, claro pois nunca teria um banco, apenas os dos jardins…). Estava
tudo certo, o que enviara do Luxemburgo para construir uma casita lá na terra
como emigras.
Como se espantou quando chegou ao Rossio, uma bela praça com um belo edifício com colunas
e tudo e depois explicou-lhe um preto que por ali andava com outros pretos, que
era o Teatro Nacional D. Maria II. Abriu os olhos e andou. Mas o que mais lhe
deu nas vistas eram os engraxadores que ali estavam com os seus instrumentos
para o desempenho da sua profissão, havia dois senhores que poliam os sapatos.
E ficou a ver a habilidade de engraxar os sapatos de puxar-lhes o brilho com um
pano esticado passa e repassa. Resolveu tirar-lhes uma fotografia, pediu-lhe
licença e já está! Resolveu dar um passeio a pé, seguindo as ruas e praças como
o primo lhe indicara.
No dia seguinte voltou
ao Rossio e aos engraxadores e começou o busílis da questão. Um deles, o Nando
Serrador, a quem perguntara uma qualquer coisa, de resto não era ela de pequena
monta, dissera-lhe que um colega, o Chico do cais do Sodré, fora encontrado com
uma faca no peito, ou seja fora assassinado. A Judiciária já tomara conta do
acontecido, porém ele, João Miranda achava, recordou-se de um crime no
Luxemburgo que a Polícia de Investigação não conseguira resolver um assassínio
e fora um dective privado que desfiara o caso à mealha num crime que ali
houvera, pensara que seria melhor um tipo de tal quilate. Assim fizera fora à
lista telefónica, páginas amarelas secção DECTIVES PRIVADOS e escolhera à sorte
um nome de um tal Miguel Castanho com o escritório na Rua da Prata, 128, 2º
esquerdo.
Por isso estava eu, Miguel Castanho, que recebi no meu escritório, onde lhe
perguntei qual era o caso que o levara ali. O senhor Miranda, antes mesmo de
relatar-me o ocorrido, disse-me que tirasse o senhor, pois era
simplesmente o Miranda. Assenti no Miranda e então ele começou a contar-me o
caso do engraxador que fora encontrado com uma faca no peito. Se eu deslindasse
o crime ele pagar-me-ia… Nestas coisas o segredo é a alma do negócio.
Aceitei o encargo que me pedira, disse-lhe que ia começar a investiga-lo e
indiquei-lhe o preço que levaria pelo meu trabalho. Achou o preço muito elevado,
era carote para as suas posses, mas que já se metera no caso, iam-se os dedos,
mas ficavam os anéis, e disse-me que se desenrascaria e arranjaria o pilim,
talvez com a ajuda do primo, e portanto que eu seguisse em frente. Assim
fiz!
Despedira-me da minha adorada Vanessa, tínhamos comprado uma vivenda no Restelo
(pois a vida corria-me bem e ganhado uns bons pilins) já entende o que se
passou, ou seja foi um beijo, língua com língua e só parámos porque eu tinha
que fazer. Voltei ao Rossio, cheguei-me a um dos engraxadores, que se chamava
Nando Serrador, poliu-me me os sapatos, e começámos a conversar, ele
era um falador sobretudo do futebol e era um benfiquista, Eu era sportinguista,
por isso entrei a brincar, ele era um lampião ferrenho, eu, sendo um leão, não
alinhava nessas exaltações.
No meio da conversa repetiu-me o que revelara ao Miranda, ou seja que outro engraxador
chamado o Zé do Cais do Sodré aparecera debaixo dos arcos do Terreiro do
Paço (que era onde dormia, a crise estava fortíssima e a austeridade era
uma chatice), com uma faca cravada no peito, uns bons quatro centímetros.
Fiquei intrigado como se soubera, fora um transeunte que trabalhava no
Ministério das Finanças que dera o alarme e participara à PSP e depois viera a
Judiciária e novamente encontrei-me com o Inspector Xavier Pintado, que ao
ver-me comentou com um ar azedo, puta de coincidência. Eu retorqui-lhe o
habitual, chegara primeiro…Ele franziu o cenho e de que maneira, no fundo
dávamos-mos bem, mas fingíamos para disfarçar. Vieram os gajos naturais
na coisa, uma ambulância para levar o corpo até ao edifício onde se fazem as
autópsias que é o Instituto de Medicina Legal, na Capital e onde ficam
depositados os corpos depois dela à espera que alguém venha identificá-los.
Pareceram-me estranhos todos os contornos do caso e por comecei a averiguar. Voltei
uma vez mais ao Rossio, indicou-me o mesmo engraxador que havia um sujeito, de
nome Vicente Caldeira, que morava na rua da Trindade, mas não sabia o número. È
fácil, mas vou-me desenrascar e dei-lhe dois euros para lhe pagar a informação
e ele agradeceu-me. Fui até à rua e perguntei no restaurante que por ali há, o
Trindade, o número da porta de um cliente habitual, o senhor doutor Manuel
Montenegro. Era o número 16, 2º Direito. Fui visitar o médico, ao seu
consultório, mas como não marcara a consulta, tive de esperar um bom bocado.
Finalmente duas horas depois entrei e ele convidou-me a sentar-me. Então de que
se queixa?
Respondi-lhe que não, que somente queria perguntar-lhe se conhecia o Zé do Cais
do Sodré. Não teve a menor dificuldade em responder-me e perguntou-me se não
era o tipo que levara uma facada no Terreiro do mas por que bulas tinham-lhe
enterrado uma faca no peito? Aí é que estava o busílis. Mas deu-me o nome e a
morada de um advogado, o Dr. Ravi Mascarenhas que era goês. Ali me desloquei,
voltaram as muitas horas de espera já sabem porquê… Lá comecei a mesma
ladainha que não o fora visitar para me dar uma consulta ou mesmo uma opinião,
mas muito simplesmente queria saber onde parava pelas tardes o engraxador. Mas
por que queria eu saber? Porque lhe haviam dado uma facadela no peito. Esbugalhou
os olhos pois que não sabia nada de tal ocorrência. Era um tipo porreiro, por
que raios lho haviam feito? Era isso mesmo que eu averiguava. Recuperado do
espanto, retorquiu-me que tinha de perguntar a uma enfermeira do Hospital São
Francisco Xavier, de seu nome Noémia da Conceição porque ela devia saber.
Já estava cansado de tantas deslocações, mas que remédio… a vida tem
destes ossos que é preciso roer. Recordei-me então que, apesar de todas as
dificuldades, eu devia seguir em frente. Portanto, e de acordo com o Nando que
continuava a ser-me muito útil e me dava o incentivo para que o criminoso fosse
punido e com pena severa, ele espetar-lhe-ia uma naifa também, ao que lhe
atirei quemalandro que é malandro não estrilha, muda de esquina, e que ninguém
podia fazê-lo. E recordei-lhe que o julgamento de Salomão não era para ali
chamado. Resumindo e concluindo: meti-me no meu carro e fui procurar a Noémia
da Conceição no hospital que ficava no Restelo.
Entrementes o Serrador (que se transformara num verdadeiro secretário para mim)
telefonara-me dando-me a informação de que o Inspector estava pior do que
estragado por causa das minhas idas e vindas, o que lhe parecia muito suspeito.
Por isso já tinha um mandato de captura com o meu nome estampado. Eu que não
achava piada ir para a grelha, disse para mim mesmo que tinha de deslindar o
crime o mais depressa possível. Portanto, dei corda às sapatilhas e cheguei ao
Hospital de S. Francisco Xavier. Coincidência lixada: Xavier da Pê Jota e
Xavier hospital.
Noémia da Conceição que vinha a sair pois terminara uma noite de serviço, usava
uma minissaia muitíssimo mini e um top com a mesma dimensão. Era uma brasa e
ela sabia que era. Aproximei-me dela e convidei-a para umas bóbidas, ao que ela
aquiesceu. Fomos até um café bar próximo, sentámo-nos numa mesa, ela pediu um
café cheio em chávena escaldada e eu um Black Bushmills com água Castello e
muitas pedras de gelo.
Enquanto aguardava-mos que o empregado nos trouxesse o que lhe tínhamos pedido,
informei-a do motivo que me levara ali, ou seja do Chico do cais do Sodré
esfaqueado no peito, debaixo de uma arcada do Terreiro do Paço. Esbugalhou os
olhos, tremeram-lhe os lábios carnudos, não podia acreditar. Porém eu disse-lhe
que fora assim mesmo, sem tirar nem pôr. Contou-me que fora amante do Chico,
mas que acabara a relação porque ele era muito ciumento. Perguntei-lhe há
quantos meses não se viam. Carregou o cenho, você está a considerar-me
suspeita? Abanei a cabeça, nem sim nem não.
Entretanto ela roçara-me a minha perna e inclinara-se sobre a mesa, para me exibir
descaradamente as mamas, nem sequer soutien trazia a mesmo tempo que me
pestanava e me piscou o olho. Se você quisesse pois é um belo homem, poderíamos
dar um salto a minha casa pois moro aqui perto. Disse-lhe que tirasse o
cavalinho da chuva, pois a minha resposta era não. E voltei a ataca-la: há
quanto tempo não via o Sodré? Vai para uns dez meses, mais coisa menos coisa.
Agora acentuavam-se as minhas suspeitas. Inclinei-me para ela, dei um murro na
mesa: matara-o mesmo, tou certo!?!?!? Não diga disparates, retorquiu-me a
menina, mas com um olhar a modos que esgazeado, tremiam-lhe as mãos.
Julga-me
burro? Sublinhei eu. Porque o matou? Eu não matei ninguém… Muito bem,
eu fico na minha e você na sua enquanto não chegar a Judiciária… Mas ela
estava assustada, mesmo assustadíssima e confessou-me que o assassinara pois o
Chico começara a chantageá-la pois ela tinha um affair com um médico
otorrinolaringologista lá do hospital. Saquei o meu mini gravador que
estava na minha algibeira. Tinha tudo registado. Desatou a chorar, Não lhe
liguei peva, pois não merecia que eu me apiedasse dela.
Nisto apareceu o
Pintado que me seguira e tinha ouvido tudo. Trazia o mandato na mão, mas
meteu-o no bolso. Você é um gajo fodido, um dia hei de apanhá-lo. Mas por
agora, desande. Mais uma vez esta merda é uma porra! Repetiu a graça de me
apanhar com as calças na mão. Cave. Imediatamente. Sou bem mandado e bem
educado, por isso abri.
O Miranda deu
saltos de contente e passou-me um cheque de zeros mais do que combináramos pois
o primo fora um gajo bué da fixe, não lhe emprestara a massa, dera-lha.
Despedimo-nos, combinámos um jantar num dia destes. Disparei para a nossa casa.
Avisara a minha Tânia do desfecho final e por isso ela abriu-me a porta
envergando um negligé quase transparente ou mesmo transparente. O Miguelzinho
já estava deitado por isso fomos como era nosso hábito até ao vale de lençóis e
de outra coisa encaracolada enrolá-mo-nos e etc. e tal. Daí que passados três meses
o puto esperava um mano ou uma mana que oxalá viesse saudável.
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Antunes Ferreira por ele mesmo: Jornalista, antigo chefe da Redacção do Diário de Notícias (1975/1991). Rádio: TSF e outras; TV: RTP1 e TV2. Cronista: A Bola, maior jornal desportivo; Elan, a primeira revista para homens; Correspondente das espanholas Tiempo, Interview, Gaceta de los Negocios e da RNE e da TVE. Política: candidato a deputado e Chefe da Redacçao do Portugal Socialista.
Sou militante do PS, Partido Socialista, de Mário Soares. Antes, da ASP (1969). Lutei contra a ditadura desde a campanha eleitoral do Gen. Humberto Delgado (1958). Três vezes interrogado pela então PIDE. Etc... Dos livros escritos, o primeiro de ficção (Abril 2008): «Morte na Picada», contos da guerra colonial em Angola 1966/1968. Assessor para a Informação do ministro das Finanças, Prof. Sousa Franco, meu colega desde o Liceu até à Faculdade de Direito. Director de Comunicação da Comissão Euro (divulgação da nova moeda única). Dei aulas em duas universidades (privadas) em Lisboa. Gosto muito de leccionar e... os alunos diziam que gostavam de mim... Pelo menos, até lhes dar as notas... Imeile ou Imilio: hantferreira@gmail.com
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