17 de junho de 2013

Devolva-lhes a liberdade!

Atividade de campo coordenada pelo NURFS/UFPel (*)

Devolva-lhes a liberdade!

Vera Luiza Vaz

Nas mãos, a carta de Maneco. Hermínia recorda os acontecimentos que resultaram na prisão de seu filho. A memória anda entre a grossa camada de poeira depositada, no propósito, talvez, de cobrir a dor e a vergonha avivadas a cada chamado da realidade.

Ainda jovem, Hermínia já se considerava uma mulher idosa. Pouco pelo costume da época, muito pela condição de viúva desde os, agora, tão longínquos 24 anos. Os dias, passa-os a sonhar com tempos distantes de aconchego e conforto.

Longo suspiro ajeita o corpo cansado na cadeira de balanço, único berço capaz de trazer o tempo passado para mais perto. Trêmulas mãos de menina, criada no conforto de uma vida regada a agrados de todas as amas à disposição para lhe concretizarem o mínimo desejo, agora mostram-se indecisas, receosas, diante da crueldade incompreendida. Hermínia sempre fizera questão de manifestar seu desentendimento diante dos fatos alheios a sua vontade.

Outro longo suspiro, agora mais longo, mais fundo, leva-a para uma tarde de domingo, lá pela segunda metade da década de 20.

As carreiras de cancha reta eram o ponto de reunião dos moradores do interior de Cacimbinhas. Encontrar conhecidos, fazer novas amizades, deliciar-se com as iguarias da culinária da época, além de apostar nos melhores "pingos", trazidos por seus donos e condutores na maratona digna de exímios cavalos e cavaleiros.

Maneco, naquela tarde, apostara num certo alazão que, segundo alardeava com conhecidos, não perderia a carreira em nenhuma hipótese.

O dono e condutor de um outro animal ouvia, desgostoso, as bravatas de Maneco. Ouvia, queimado em seu orgulho de vitorioso costumeiro.

Maneco tinha razão. O alazão ganhou a carreira com absoluta folga. Gargalhava Maneco, quando foi atingido no rosto, inesperadamente, por um violento tapa, que o deixou paralisado por alguns segundos.

Ora, gaúcho não admite tapa no rosto! Ao soar do tapa, uma voz anunciou: Pra não te gabares, guri!

A turma do "deixa disso" entrou em ação. Maneco, impedido de reagir naquele momento, anunciou no olhar obtuso  que a contenda não tivera seu desfecho final.

No domingo seguinte, não houve carreiras. Hermínia deu graças pela trégua, quem sabe, definitiva, à desavença.

Um leve balançar na cadeira, traz a lembrança de uma outra tarde. O tempo, como Hermínia esperara, não  trouxera a serenidade ao coração do jovem Maneco.

Ao avistar, naquela tarde, seu agressor, Maneco partiu para cima dele. A lição, proposta por Maneco, veio através de ruidosos relhaços.

"Assim age um homem" esbravejou o rapazito. Não satisfeito, relampejou uma lâmina no ar! Seu oponente, sem tempo para reagir, sangrou até o fim...

Maneco voltou para casa. Não se arrependeu. Lavara, em sua opinião, sua honra com sangue, numa atitude de homem, conforme dissera e não de guri, como fora chamado.

O fato resultou na prisão e condenação de Maneco que, em nenhum momento, mostrou-se arrependido.

A carta, agora aberta, se agita nas hesitantes mãos de Hermínia.

Uma foto e um bilhete caem de dentro do envelope. Na foto, um quase menino, fisionomia triste, esquálida aparência, braços entrelaçados nas grades, numa atitude comoventemente pensativa.

Com o olhar umedecido, Hermínia passa os olhos pela caligrafia rabiscada." Mãe, diz à Dulcina que liberte todos os pássaros que estão na gaiola. Devolva-lhes a liberdade! Não há nada pior do que viver sem ela!"

No mesmo instante, Dulcina, irmã de Maneco, vai até as gaiolas e, abrindo-as, uma a uma, cumpre o pedido do irmão prisioneiro.

Alguns meses depois, enfraquecido pela tuberculose, Maneco foi libertado. Em casa, faleceu em algumas semanas.

Hermínia, pensativa, olhar perdido, parece carregar o mundo... o tempo...
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Publicado em contos ao entardecer
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(*) Durante Curso de Capacitação, em 2011, funcionários da UFPel devolveram à natureza pássaros apreendidos pelas autoridades ambientais e tratados pelo Núcleo de Reabilitaçãoda Fauna Silvestre. Na oportunidade, o editor deste blog teve a satisfação de libertar um filhote de Canário da Terra que saiu da gaiola deixando um rastro colorido captado sutilmente pela cãmera fotográfica de um colega.
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5 comentários:

Nikão Duarte disse...

Muito bom, com múltipla abordagem (história local, vida rural, honra, machismo,ecologia) num curto mas sensível texto.

Luiz Carlos Vaz disse...

Um abraço, Nikão, obrigado por comentar aqui.
(E o livro do Mâncio? Quero ler...)

Nikão Duarte disse...

Caro Vaz, o livro é sobre a mudança de nome de Cacimbinhas para Pinheiro Machado e está com parte escrita, parte em pesquisa, ainda. Permita-me uma pequena correção: chamava-se Manço Paiva (com Ç, mesmo!) o cara que deu origem a toda essa "novela". Abração e grato por permitir-nos essas reminiscências bageenses, cacimbinhenses, zona-sulense...

Luiz Carlos Vaz disse...

Correto, Nikão. Ainda ando a cata do registro de nascimento dele... lá por Jaguarão. Se achar, te aviso.
Vaz

Gerson disse...

Passaros não merecem viver aprisionados, já os humanos em muitos casos precisam.