Atividade de campo coordenada pelo NURFS/UFPel (*) |
Devolva-lhes
a liberdade!
Vera Luiza
Vaz
Nas mãos, a carta de Maneco. Hermínia
recorda os acontecimentos que resultaram na prisão de seu filho. A memória anda
entre a grossa camada de poeira depositada, no propósito, talvez, de cobrir a
dor e a vergonha avivadas a cada chamado da realidade.
Ainda jovem, Hermínia já se
considerava uma mulher idosa. Pouco pelo costume da época, muito pela condição
de viúva desde os, agora, tão longínquos 24 anos. Os dias, passa-os a sonhar
com tempos distantes de aconchego e conforto.
Longo suspiro ajeita o corpo cansado
na cadeira de balanço, único berço capaz de trazer o tempo passado para mais
perto. Trêmulas mãos de menina, criada no conforto de uma vida regada a agrados
de todas as amas à disposição para lhe concretizarem o mínimo desejo, agora
mostram-se indecisas, receosas, diante da crueldade incompreendida. Hermínia
sempre fizera questão de manifestar seu desentendimento diante dos fatos
alheios a sua vontade.
Outro longo suspiro, agora mais
longo, mais fundo, leva-a para uma tarde de domingo, lá pela segunda metade da
década de 20.
As carreiras de cancha reta eram o
ponto de reunião dos moradores do interior de Cacimbinhas. Encontrar
conhecidos, fazer novas amizades, deliciar-se com as iguarias da culinária da
época, além de apostar nos melhores "pingos", trazidos por seus donos
e condutores na maratona digna de exímios cavalos e cavaleiros.
Maneco, naquela tarde, apostara num
certo alazão que, segundo alardeava com conhecidos, não perderia a carreira em
nenhuma hipótese.
O dono e condutor de um outro animal
ouvia, desgostoso, as bravatas de Maneco. Ouvia, queimado em seu orgulho de
vitorioso costumeiro.
Maneco tinha razão. O alazão ganhou a
carreira com absoluta folga. Gargalhava Maneco, quando foi atingido no rosto, inesperadamente,
por um violento tapa, que o deixou paralisado por alguns segundos.
Ora, gaúcho não admite tapa no rosto!
Ao soar do tapa, uma voz anunciou: Pra não te gabares, guri!
A turma do "deixa disso"
entrou em ação. Maneco, impedido de reagir naquele momento, anunciou no olhar
obtuso que a contenda não tivera seu desfecho final.
No domingo seguinte, não houve
carreiras. Hermínia deu graças pela trégua, quem sabe, definitiva, à desavença.
Um leve balançar na cadeira, traz a
lembrança de uma outra tarde. O tempo, como Hermínia esperara, não
trouxera a serenidade ao coração do jovem Maneco.
Ao avistar, naquela tarde, seu
agressor, Maneco partiu para cima dele. A lição, proposta por Maneco, veio
através de ruidosos relhaços.
"Assim age um homem" esbravejou
o rapazito. Não satisfeito, relampejou uma lâmina no ar! Seu oponente, sem
tempo para reagir, sangrou até o fim...
Maneco voltou para casa. Não se
arrependeu. Lavara, em sua opinião, sua honra com sangue, numa atitude de
homem, conforme dissera e não de guri, como fora chamado.
O fato resultou na prisão e
condenação de Maneco que, em nenhum momento, mostrou-se arrependido.
A carta, agora aberta, se agita nas
hesitantes mãos de Hermínia.
Uma foto e um bilhete caem de dentro
do envelope. Na foto, um quase menino, fisionomia triste, esquálida aparência,
braços entrelaçados nas grades, numa atitude comoventemente pensativa.
Com o olhar umedecido, Hermínia passa
os olhos pela caligrafia rabiscada."
Mãe, diz à Dulcina que liberte todos os pássaros que estão na gaiola.
Devolva-lhes a liberdade! Não há nada pior do que viver sem ela!"
No mesmo instante, Dulcina, irmã de
Maneco, vai até as gaiolas e, abrindo-as, uma a uma, cumpre o pedido do irmão
prisioneiro.
Alguns meses depois, enfraquecido
pela tuberculose, Maneco foi libertado. Em casa, faleceu em algumas semanas.
Hermínia, pensativa, olhar perdido,
parece carregar o mundo... o tempo...
________________________________
Publicado em contos ao entardecer
________________________________
(*) Durante Curso de
Capacitação, em 2011, funcionários da UFPel devolveram à natureza pássaros
apreendidos pelas autoridades ambientais e tratados pelo Núcleo de Reabilitaçãoda Fauna Silvestre. Na oportunidade, o editor deste blog teve a satisfação de libertar um filhote
de Canário da Terra que saiu da gaiola deixando um rastro
colorido captado sutilmente pela cãmera fotográfica de um colega.
.
5 comentários:
Muito bom, com múltipla abordagem (história local, vida rural, honra, machismo,ecologia) num curto mas sensível texto.
Um abraço, Nikão, obrigado por comentar aqui.
(E o livro do Mâncio? Quero ler...)
Caro Vaz, o livro é sobre a mudança de nome de Cacimbinhas para Pinheiro Machado e está com parte escrita, parte em pesquisa, ainda. Permita-me uma pequena correção: chamava-se Manço Paiva (com Ç, mesmo!) o cara que deu origem a toda essa "novela". Abração e grato por permitir-nos essas reminiscências bageenses, cacimbinhenses, zona-sulense...
Correto, Nikão. Ainda ando a cata do registro de nascimento dele... lá por Jaguarão. Se achar, te aviso.
Vaz
Passaros não merecem viver aprisionados, já os humanos em muitos casos precisam.
Postar um comentário