2 de novembro de 2014

Pompa Funerária: práticas cotidianas alteradas


Capelinha que pertenceu a Funerária Nossa Senhora Auxiliadora
Pompa Funerária: práticas cotidianas alteradas

Elaine Maria Tonini Bastianello (*)

Morrer é, no presente, uma situação amorfa, uma área vazia no mapa social.

Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significados. Os tabus proíbem a excessiva demonstração de sentimentos fortes, embora eles possamacontecer¹.

Examinar o comportamento do homem perante a morte nos possibilita dialogar com essa temática tão excluída e pouco comentada em nosso cotidiano.

Fazia parte do cotidiano dessa Cidade o “anunciar o velório”, procedimento realizado através da colocação de uma capelinha estampada em frente à sede da empresa funerária com o nome do morto (Figura 1), assim como na fachada da casa do defunto, sinalizando a presença da morte. Os velórios viravam a noite, pois era hábito velar o defunto por 24 horas.

Esse ato geralmente acontecia dentro da casa do falecido, na qual a família perdia toda a sua privacidade perante o amontoado de visitas que compareciam para se despedir do morto e se solidarizar com a família enlutada.

Também ficava a cargo das empresas funerárias a confecção de santinhos fúnebres, que eram lembrancinhas do estimado defunto distribuídas aos familiares e amigos que se faziam presentes na missa de sétimo dia, de um mês ou de um ano de passamento. Estas empresas possuíam álbuns com um diversificado repertório de santinhos, para que as famílias enlutadas pudessem escolher de acordo com as suas preferências.

Na imagem desta página está o álbum da Funerária Nossa Senhora de Fátima, de Túlio Lopes. Nos modelos mais antigos, a fotografia do morto era colada no santinho, que era confeccionado em preto e branco. Mais adiante, percebe mos que as fotografias já vinham impressas nas lembrancinhas, ainda em preto e branco. A partir dos anos de 1970, as lembrancinhas ganharam cor, mas a foto do morto continuou em preto e branco.

Santinho fúnebre que pertencia a Funerária Nª Senhora de Fátima.

 Esses artefatos, elaborados para manter viva a memória da pessoa falecida, apresentavam, além da fotografia, também mensagens religiosas como:

“Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”; “Santa é a morte daqueles que souberam viver em paz”;
“Viveu querendo a todos, morreu querida por todos”; etc.

Compreendo que esse modelo de registro de morte foi escamoteado. Essas práticas de compartilhar a memória do falecido através de lembrancinhas mortuárias se ausentaram com o passar das décadas.

Para acompanhar esses velórios as famílias se enlutavam através do uso de roupas pretas e esse período de luto se estendia conforme o grau de parentesco com o morto. Esse luto fechado, não se limitava à mulher ou ao homem.

Segundo Mário Nogueira Lopes, aqui em Bagé, nem mesmo as crianças eram poupadas de vestirem o luto. Mesmo no verão, quando os trajes infantis podiam ser de cor branca, estes traziam algum adereço na vestimenta sinalizando que haviam perdido alguém muito próximo.

Com o passar das décadas o luto infantil se exauriu e o mesmo aconteceu com o pretinho que antes era mórbido e que se desassociou do seu significado anterior que o remetia à morte. Além do luto, era uma prática da família enlutada enviar cartões aos conhecidos para convidá-los a comparecer no velório. Da mesma forma, também se enviava à família do morto cartões de pêsames.

Entendo que, na atualidade, a morte é tratada às escondidas, sendo um assunto de preferência nem comentado, exigindo da família enlutada um autocontrole de seus sentimentos. Todas essas exéquias que faziam da morte e do luto um verdadeiro espetáculo foram subtraídas num ritual simplificado e prático.

Na atualidade, o defunto é conduzido para as capelas funerárias num carro comum, praticamente anônimo, pois a condução que o transporta não possui nenhum adereço que remeta à morte. No velório as famílias vestem roupas de uso cotidiano, sem preocupação com a cor da roupa específica para esse fim. O preto perdeu sua relação com a morte.

Por fim, sei que o passado não volta e que estamos vivendo numa sociedade que se esvaziou de certos ritos. Assim, tais procedimentos causariam estranhamento, pois fazem parte de outro contexto. No entanto, conhecer esse passado significa conhecer as formas dessa sociedade se portar perante a morte. Nessa perspectiva, percebo que os aparatos com relação aos rituais de velamento se esvaziaram e até se laicizaram.

(*) Ms. em Memória e Patrimônio e Membro do Núcleo de Pesquisas Históricas Tarcísio Taborda

Publicado no jornal Minuano do dia 31/10/14

¹A Solidão dos Moribundos, de Norbert Elias, Editora Saraiva


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