Foto Luiz Carlos Vaz |
Nua
Maria Clara Michels (*)
Despir-me de todas as vestes inúteis até só restar o imprescindível.
Descalçar os sapatos até sentir a força da terra, da areia, da relva, da água e
da pedra. Livrar-me da pele, da carne, sangue, músculos, nervos, até chegar aos
ossos. Despojar-me da casca e até de
folhas, flores ou frutos, restando apenas raiz.
Libertar-me de preconceitos, juízos, de ideias fixas, de subterfúgios,
para chegar ao cerne, ao fundo, alcançar a verdade e, com ela, a piedade.
Desligar-me da resignação, da docilidade ou da ferocidade extremas, até
alcançar o equilíbrio. Aspirar o ar limpo, a brisa, o cheiro das manhãs e das
noites, até que o pulmão seja uno com o mundo natural. Desejar o voo, soltar o
velame, liberar a âncora, mergulhar nas nuvens até que o sonho seja coisa real
e tangível.
Transformar-me em pedra, flor ou árvore, isolando o supérfluo, o consumo,
o que excede, o que é demais. Preservar a beleza natural, a dor pelo outro, a
força para a luta, afastando o medo, a dúvida, os anseios pelo impossível, pelo
desnecessário, pelo que não é em si mesmo. Nadar contra a corrente, ser
aguerrida, forte, pular obstáculos, levantar o estandarte, escalar as
montanhas. Não desistir nunca, querer a vida, ansiar pelo tempo, marcar cada
dia, viver cada instante que passa.
Deixar-se queimar, incendiar-se, arder, até que tudo seja sentimento,
amor, paixão, desejo. Vida. Esvair-se, perder-se, transformar-se. Perdoar e
recomeçar. Atirar-se. Mais vida. Chegar
ao limite do reconhecimento, do conhecimento, entender-se e bastar-se.
Entrar. Descobrir. Ficar, permanecer. Amar-se. Dentro. No fundo. No cerne. Nua.
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Maria Clara Michels é jornalista; publicou durante anos suas crônicas nos jornas Diário Popular e Diário da Manhã, em antologias, e atualmente posta nas redes sociais. (Mas tem uma gaveta cheia de escritos inéditos...)
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