O autor, fotografado por Cláudia Rodrigues |
Geraldo
Hasse (*)
Durante mais de vinte anos, conservei
no guarda-roupa um lote de blusões de lã raramente usados em algum inverno em
cidades em que morei – casos de Ribeirão Preto, Vitória e São José do Rio
Preto, situadas em torno do Paralelo 20, onde é raro a temperatura cair a 15ºC.
Daí que estavam em estado de seminovos os tais pulôveres quando se deram as
terríveis enchentes no RS, e aqueceu-me o coração colocá-los no pacote de
doações entregue ao Correio em maio de 2024.
Desde então, diante da aparente
iminência do fim do mundo, cresceu o sentimento de desapego no meu pobre
mundinho particular. Roupas, que muita gente aceita, já não sobram, mas aqui no
meu tugúrio há uma mercadoria que nem todo brasileira valoriza: livros. Há mais
de meio século carrego pilhas desses objetos de papel e tinta (e nunca me
esqueço da minha primeira compra literária: com 14 anos apliquei todo meu
dinheiro -- 5 cruzeiros novos – pra levar pra casa o volumoso “Contos e
Novelas” de Voltaire, edição da velha Livraria do Globo).
Depois de tanto comprar e ganhar
livros, a mim bastaria hoje manter umas 50 obras literárias, entre contos,
ensaios e romances, mas até agora persisti em guardar um milhar de títulos
(alguns em duplicata) que raramente são abertos – aliás, o Voltaire acima não
mora mais comigo.
Seria prático, portanto, doar o que
estiver sobrando. Foi assim que passei a ensacolar alguns volumes entregues em
centros comunitários. É um descarte prazeroso, mas não isento de algum remorso
(diante dos autores, talvez). Antes de cada doação, porém, me obrigo a um
exercício de comiseração: pego cada volume, dou uma folheada, checo os
créditos, confiro alguma frase sublinhada e tento recordar quando, onde, como e
por que esse livro chegou e se tornou um amigo silencioso e servil, mas nunca
inerte.
Dizer adeus a um livro é tão difícil
que, não raro, após um manuseio de minutos, acabo por devolvê-lo à estante,
para que permaneça mais um tempo à mercê de uma releitura ou de um simples
afago na lombada. Há livros cujo descarte seria mesmo uma espécie de traição.
Fazem parte dessa lista aqueles com dedicatória. Parece absurdo, mas no século
passado ganhei um livro em que o autor, renomado repórter policial, escreveu,
eufórico: “A você, xerife das quatro estações, o abraço do Pena Branca”. Mal o
conhecia, mas compreendi o significado de um livro na vida de uma pessoa: são
muitos anos de trabalho, mil perguntas em noites insones etc.
Não pretendia alongar-me nesse
assunto de livros e roupas, mas não posso deixar de falar do transtorno que me
acompanha desde que me tornei um escriba profissional: a mania de guardar
caixas contendo agendas, cadernos de anotações e documentos (muitos em formato
de livro) acumulados ao longo do tempo. São papéis que registram entrevistas,
viagens e frases sem valor para quem olha de fora (há até uma caixa de fitas
K7, embora já não exista o respectivo gravador). No entanto, basta abrir
qualquer um desses fragmentos da prática da reportagem ou de momentos de
estudos para concluir que muitos episódios ou personagens ali anotados têm uma
remota ligação com a realidade de hoje. Mal comparando, são como espoletas
ainda aptas a fazer crepitar o fogo na lareira. Por exemplo, achei um caderno
onde anotei aulas de sociologia do bravo professor Florestan Fernandes
recém-chegado do exílio em 1976 – numa das folhas, consta até um desenho tipo
caricatura da cara dele. Claro que esse caótico doc.edu do auge da ditadura não
vai para o fogo nem para o lixo.
Enquanto dou uma última espiada nessa
papelada descartável antes de entregá-la às chamas, concluo que não há forma
mais original de desapego do que incinerar manuscritos guardados como
salvaguarda da própria memória. Eis então que recebo (de graça) a visita de uma
frase gravada nos anos 1970 na parede de uma espelunca em Paragominas: “Tudo
enfada, só a variedade recreia”.
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Geraldo Hasse é jornalista e escritor; trabalhou como repórter e editor pelo Brasil
afora em diversos veículos do jornalismo, publicou vários livros, e atualmente mora em Santa Catarina. Ah, e me
regalou com o Venâncio Xavier, leia aqui:
https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2021/01/venancio-xavier-ou-o-poncho-voador.html