28 de janeiro de 2011

Escravos de Jane


Remissão

Luis Fernando Verissimo

Uma única catedral gótica ou uma única cantata de Bach redimem a religião de todos os seus males. Ou não. Você pode atribuir a beleza da igreja e da música à devoção religiosa e perdoar as barbaridades que a mesma devoção inspirou através da história, ou concluir que uma coisa não determinou a outra — Bach seria Bach mesmo sem a devoção — e apenas se admirar que tenham sido simultâneas.

Escolha: a arte religiosa se nutriu da violenta história do cristianismo ou floresceu apesar dos seus conflitos, para compensar a violência? Pode-se até imaginar uma tabela de remissões. Quantos anos de obscurantismo e fanatismo da Igreja são absolvidos pela Pietà do Michelangelo, por exemplo? Só o Réquiem do Mozart basta para a absolvição da Inquisição?

Tudo depende do olhar. Há quem olhe as pirâmides do Egito e veja um fenômeno arquitetônico e um triunfo do empreendimento humano. Outros só veem o sofrimento dos escravos pela maior glória de senhores insensíveis. Há quem olhe a fachada de uma catedral antiga e sinta seu espirito se enlevar, há quem veja na sua imponência apenas uma declaração de poder.

No seu livro "Cultura e Imperialismo", o critico Edward Said escreveu sobre a relação, às vezes inconsciente, do romance europeu com o colonialismo a partir do século 19. Seu exemplo mais comentado é um estudo sobre "Mansfield Park", de Jane Austen, em que ele ressalta a importância para a vida na mansão descrita pela autora, que dá título ao livro, de uma plantação no Caribe.

Em nenhum momento do livro de Austen é sugerido que a família seja cúmplice do imperialismo, e muito menos que seu estilo de vida dependa de escravos, mas a tese de Said é que em boa parte da literatura feita na Europa na época — inclusive singelas histórias de donzelas pastorais vivendo o drama de arranjar marido — esta interdependência está implícita. Depende do olhar de quem a lê.

Como no caso de catedrais e cantatas, a literatura produzida na Inglaterra e na França principalmente (e Portugal e Espanha, já que estamos falando de colonizadores) redime ou não redime o crime, neste caso da conquista imperial. Vendo uma mansão inglesa em meio a um idílico parque de grama perfeita, você pensa em Jane Austen ou pensa nos escravos?

Luis Fernando Verissimo
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2 comentários:

olm iro muller disse...

O estilo e a verve de L. F. Veríssimo são inconfundíveis.
Não sei se acontece com o titular e com os leitores deste blog, mas frequentemente recebo textos idiotas atribuídos a Veríssimo. Ou é muita ignorância, ou querem "esculachar" mesmo com grande cronista.

Luiz Carlos Vaz disse...

Pois é. E anda por ai agora, Olmiro, um texto idiota criticando o bbb (que é uma coisa mais idiota ainda) e que está atribuido a ele... coitado do LF Veríssimo (e do Arnaldo Jabor, e da Marta Medeiros e etc). O pessoal escreve e acha melhor colocar como autores Shakespeare, GG Marques, Neruda... não assumem seus textos que, em alguns casos, são até bonzinhos.