Nota fiscal de
um passado distante
Valacir Marques
Gonçalves
É tempo de
finados. Li que existem dias em que o café da manhã tem sabor de mágoa. O dia
de finados tem outro gosto – de saudade. A melancolia é inevitável. O poeta
T.S. Eliott já dizia que “a gente escreve para se libertar da emoção”. Hoje
peço licença, vou falar de algo muito pessoal.
Depois de uma
semana difícil, estava desanimado, quase triste. Pedi socorro para meus “cedês”
preferidos. Geralmente ouço um blues – dos antigos -, pois concordo com a
sentença exarada por um velho negro americano: “O blues é uma dor para curar a
dor!”.
Mas deixa pra lá
tanta divagação. Num desses dias de desânimo recebi a visita da minha irmã. Ela
falou meu nome e entrou na sala com um objeto na mão. Era um velho rádio,
pequeno, um RCA VICTOR, daqueles com válvulas, um objeto estranho e
desconhecido para os mais jovens. Mas, para mim, não era simplesmente um rádio,
era “o rádio”.
Tive a impressão
de que a luz apagou e iniciou um filme. Aquele radinho entrou na minha vida
outra vez e, pasmem, com Nota Fiscal e tudo. Li o documento – um papel
amarelado, datado de 30 de agosto de 1948 …
O rádio me fez
lembrar meu pai. Foi sargento do Exército. Recordei o garbo com que usava a
farda. Dava uma atenção especial às botas imensas (de cavalaria). Elas estavam
sempre brilhando, minha função logicamente… Ele cursou somente o primeiro grau,
mas me ensinou tudo na vida, insistindo sempre para que eu jamais abandonasse
as noções de honestidade, lealdade e decência. Às vezes, acho que devo a ele
tudo o que eu não tenho…
Em volta daquele
rádio nossa família ficava reunida, escutando as novelas de então – dramalhões
que a todos emocionavam. Tínhamos um compromisso imperdível: escutar o
“Repórter Esso” – a “testemunha ocular da história”. Mas teve algo que jamais
esquecerei: a transmissão da Copa do Mundo realizada na Suécia.
Olhei o velho
rádio e senti algo estranho. Tive a sensação de que meu pai estava aqui, do meu
lado: “Didi pegou a bola no meio do campo, passou pro Garrincha na ponta
direita, que entregou pro Vavá, que deixou passar pro Pelé”. Não precisa
concluir… Claro que foi gol! Todos gritavam: “O Brasil é Campeão do Mundo!”.
Pela primeira vez tínhamos a sensação de que éramos os melhores do mundo em
alguma coisa…
Outro grande
acontecimento era o carnaval. Ouvíamos as rádios para decorar as canções. Era
assim mesmo! O rádio cumpria o papel de professor. Nos bailes já estávamos
“ensaiados”, cantando as letras, do início ao fim. Hoje quando olho a televisão
e vejo o desfile da Sapucaí me dou conta de como o mundo mudou. Pessoas sem
identidade alguma com a festa fazem de tudo para aparecer na TV, enquanto os
verdadeiros sambistas, anonimamente, empurram imensos carros. Dou razão à letra
de um samba antológico que denunciava: “Super Escolas de Samba S. A./
Superalegorias/ Escondendo gente bamba/ Que covardia!”.
Amigo radinho,
eu já estava triste, você não tem o direito de aumentar meu desconforto. Se ele
falasse, tenho certeza de que responderia: “Demorou, mas me vinguei!”. É claro
que eu responderia: “Vingou-se do quê, velho amigo?”. Lembrei. Foi um dia
especial na nossa casa. Depois de muitos cálculos, meu pai criou coragem e
comprou, “em doze prestações”, um rádio novo. Daqueles grandes, cheio de
teclas. “Pegava’ tudo que era rádio”, inclusive as mais distantes, até da
Argentina, diziam…
Era isso, o
radinho estava me dando o troco por algo que jamais perdoou. Pior: ele tinha
razão. Fora arrancado do lugar de honra da sala para dar lugar ao novo. Foi
guardado e nunca mais lembrado.Para ser justo, foi lembrado pela minha irmã,
mas acho que assim não vale. Lembrar do velho amigo depois de tanto tempo…
Lembrá-lo numa época em que o mundo está repleto de computadores, celulares e
rádios lotados de modernidades. Não é justo.
Eu precisava
fazer alguma coisa, pois o “velho” insistiu sempre que lealdade é fundamental.
Olhei para minha sala com toda aquela parafernália eletrônica e tomei uma
decisão. Peguei o velho amigo com todo o cuidado, como quem pega uma criança
recém nascida e procurei um lugar nobre para hospedá-lo.
É isso mesmo,
hospedá-lo. Meu amigo não vai trabalhar mais. Vai ficar aqui, olhando os outros
na labuta diária.Seu trabalho vai ser um só (não pode virar vagabundo). Vai me
obrigar a lembrar os “meus velhos”. Lembrar minha cidade do interior. Das
matinês de domingo à tarde, onde, iguais aos “cowboys dos gibis”, todos os
meninos viravam “mocinhos” e prendiam os “bandidos” (era uma época que os
bandidos eram presos e castigados) e, principalmente, não permitir que eu
esqueça dos amigos de verdade.
Finalmente, não
me deixará, jamais, esquecer daquele tempo, que nunca mais vai voltar. Quando
um pequeno rádio fazia a felicidade de uma família. Quando não era preciso
gastar tanto para ser feliz.
Valacir Marques Gonçalves
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Nota: o rádio da foto é o meu Clipper, não o RCA VICTOR do Valacir
.
4 comentários:
Tchê Vaz, linda a postagem do Valacir, me fez lembrar meus tempos de guri, em que gravava as musicas da radio Cultura em fitas cassetes. Um baita abraço.
O Rádio é como o Livro, Gerson, vão sobreviver ao "fim do mundo".
Li esta postagem, e realmente minhas recordações em pleno dia de finados foram para junto de meu amado pai, talvês ele quisesse que eu lembrasse dele neste dia que estamos tão melancólicos.
Meu pai era militar também daqueles sisudos, parece que estava sempre em posição de sentido, antigamente á postura de um militar era muito séria, ele era da cavalaria coincidência,e o únicos momentos que lembro de meu pai descontraído e quando nos reunia na volta do rádio,ás vezes na eletrola nos momentos mais solenes,acompanhava em silêncio como se fosse final de campeonato Baguá...e Repórter Esso...Lindos tempos, grandes recordações que deixou meu dia ainda mais cheio de saudades,mas maravilhosas recordações.
Rosangela Rosa Herrmann
Li esta postagem, e realmente minhas recordações em pleno dia de finados foram para junto de meu amado pai, talvês ele quisesse que eu lembrasse dele neste dia que estamos tão melancólicos.
Meu pai era militar também daqueles sisudos, parece que estava sempre em posição de sentido, antigamente á postura de um militar era muito séria, ele era da cavalaria coincidência,e o únicos momentos que lembro de meu pai descontraído e quando nos reunia na volta do rádio,ás vezes na eletrola nos momentos mais solenes,acompanhava em silêncio como se fosse final de campeonato Baguá...e Repórter Esso...Lindos tempos, grandes recordações que deixou meu dia ainda mais cheio de saudades,mas maravilhosas recordações.
Rosangela Rosa Herrmann
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