Ilustração: Sergio Fontana |
O Q-Suco do Messina
Sérgio M. P.
Fontana (*)
(Para os bageenses
da velha guarda ligados ao futebol, de um modo geral)
Esta é uma história baseada em fatos, não em boatos. Em alguns pontos onde a realidade não é conhecida - só imaginada - as situações, um único personagem e diálogos foram inventados pelo autor da narrativa. Em outros, até os diálogos são a mais pura expressão da verdade, e nesses casos todos os personagens, apesar dos nomes fictícios, também são reais.
Bagé, RS - domingo,
8:00 horas. Messina nem
dormiu direito, pensando que na tarde desse mesmo dia iria passar pela sua
primeira prova de fogo como técnico de futebol de um clube profissional.
Técnico da categoria de juniores, na verdade, mas o cargo lhe pesava nos ombros
como se ele dirigisse o grupo dos profissionais.
O clássico Ba-Gua,
tradicional disputa entre o Grêmio Esportivo Bagé e o seu adversário de mais
idade, o Guarany Futebol Clube, dá o que falar desde 1921, quando estes clubes
se enfrentaram pela primeira vez. Ao longo destes quase cem anos, onde mais de
quatrocentos jogos foram realizados, há um equilíbrio técnico que não deixa a
rivalidade se extinguir.
Então se
justificava o nervosismo do Messina, na manhã do dia treze de março de mil
novecentos e setenta e ...
Tomou um banho,
escovou os dentes, nem tomou café, nem se despediu da esposa, e saiu a pé, pela
sombra. Dobrou na primeira esquina, atravessou em diagonal a rua deserta,
caminhou alguns metros e entrou na farmácia, na esquina da Sete de Setembro com
a Ismael Soares. Não demorou muito. Tinha encontrado o que procurava. Subiu a
Avenida Sete, atravessou a rua em direção à única loja que abria no domingo, e
que ficava na outra esquina, a da Marechal Deodoro, e viu que as grades da loja
estavam levantadas, indicando que alguém estava ali, mas a porta de vidro
estava fechada.
Meteu a cara no
vidro da porta, para espiar para dentro da loja, mas não viu ninguém.
"Namorou" a vitrine, pelo outro lado da esquina e voltou a ficar
diante da porta. Deu cinco batidas no vidro ao mesmo tempo em que alguém lhe
dava cinco tapinhas nas costas. Olhou para trás e reconheceu dona Isamara, a
proprietária da loja.
- Saí para dar uma
volta! - disse ela. Em que posso ajudá-lo, professor Medicina?
- Messina, dona
Isamara. Messina! Preciso de um balde de plástico. Aqueles para 10 litros. A
senhora tem?
- Temos amarelo,
azul, laranja, marrom, roxo, verde e vermelho...; amarelo, não! Esteve aqui um
senhor, mais ou menos da sua idade, agora de manhã, um pouco mais cedo, e levou
o último. Mas fora o AMARELO, qual das outras cores o senhor prefere?
- Ãããh...,
vermelho, dona Isamara! VERMELHO! -
respondeu, agitado.
Pagou, pegou o
balde, acomodou a sacola dos remédios dentro dele e voltou para casa.
O jogo dos juniores
era a preliminar do jogo principal - o Ba-Gua de profissionais - e iniciava às
13 horas. Por volta do meio-dia os atletas da equipe anfitriã começaram seus
preparativos. O massagista, o roupeiro e todo o material de jogo também utilizado
pelos profissionais foram colocados à disposição do grupo do professor Messina
que escolheu dentre os três modelos de fardamento, o tradicional.
Naqueles tempos era
preferencial, e quase rigoroso, o hábito de se utilizar a numeração de 1 a 11
para definir os jogadores titulares de uma equipe. E assim foi feito também
nessa oportunidade pelo técnico Messina, que escolheu, titubeando um pouco,
seus onze titulares.
Olhou para mim,
recém chegado; olhou para o outro cara que vinha sendo titular; olhou para mim,
de novo, e escolheu o outro. Deu a ele a camisa 8, tão cobiçada por mim. Optara
pelo futebol-força. Resignei-me ao banco de reservas, com a camisa 17. No fim
das contas, nem fui aproveitado nesse jogo.
Chegou a hora da
palestra, mais conhecida no futebol como “preleção”. O treinador orientou seus
jogadores a adotarem a marcação sob pressão durante todo o tempo. Queria que o
seu time não deixasse o adversário jogar, contrariando a orientação do
professor Dionísio, o preparador físico, que dizia que a equipe ainda não
estava preparada fisicamente para manter essa estratégia por muito tempo.
Quando o fisicultor
resolveu iniciar o trabalho de aquecimento, o técnico, já meio contrariado,
pediu-lhe que aguardasse um pouco. E do porta-malas do seu Maverick marrom,
estacionado na frente do estádio, emergiram o balde vermelho e uma grande
colher de pau; da capanga marrom, cinco pacotes de Q-Suco de framboesa e [eu
contei] quatro cartelas de remédios, contendo 12 graúdos comprimidos
vermelho-escuro.
Em êxtase, Messina
voltou apressado e tratou de encher o balde com água da torneira. Adicionou os
pacotes de Q-Suco e, com a rapidez de quem debulha milho, foi pressionando o
polegar em cada um dos casulos das cartelas dos comprimidos que iam saltando,
um a um, para dentro do balde. Quando alguém perguntou do que se tratava, ele
respondeu:
- Vitamina, tchê!
Vitamina!
Todo mundo ficou em
silêncio quando ele começou a misturar o conteúdo do balde com a colher de
pau. Ouvia-se um barulho dos comprimidos se chocando com o interior do
balde como se esses fossem pedras de gelo. Em três ou quatro minutos, foram
todos dissolvidos. Estava pronta a “vitamina”, o Q-Suco do Messina, servido em
duas canecas de latão, de 300 ml, a cada um dos atletas.
Até os reservas
foram convocados para tomar a estranha mistura, um Q-Suco sem açúcar, com um
gosto residual amargo. A gente tomava e ele oferecia mais.
Em seguida, começou
o aquecimento para o jogo. Os atletas titulares começaram a se movimentar, sob
o comando do professor Dionísio. O quarto-zagueiro Dudão, com a camisa 15,
portanto escalado para a reserva, ficou um pouco afastado do grupo e se
encostou na parede para assistir o trabalho. Messina, atento, retrucou:
- O que tu estás
fazendo aí, guri? Vem aquecer!
- Ué! Eu sou
reserva! Não vou jogar! – respondeu o Dudão.
- Quem foi que
disse que tu não vais jogar? Vem aquecer!
E assim os onze
jogadores do time do Messina entraram em campo com a numeração alterada. O
quarto-zagueiro titular, camisa 4, ficou no banco; jogou o Dudão, com a 15. E
foi um dos melhores em campo, coiceando, e bufando, todo o tempo, na nuca do
centroavante do time adversário, cujos jogadores - cá entre nós - correram
tanto quanto os nossos.
O empate em zero a
zero, conseguido aos trancos, barrancos, chutões, muito suor, disposição de
sobra e olhos esbugalhados, só foi possível – tenho certeza – graças ao
milagroso Q-Suco do Messina. ¿Será?
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(*) Sergio Fontana edita o Blog O século XX, onde publicou esta crônica.
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