14 de setembro de 2013

Uma incursão pelos cabarés

O livro de Schlee, publicado pela ardotempo. Foto de Gilberto Perin

Uma incursão pelos cabarés

Klécio Santos (*)

O cenário é Jaguarão, à época em que a fronteiriça cidade vivia a epopeia da construção da ponte internacional Mauá, inaugurada em 1930. O agito durante o dia, de marinheiros e operários, contrasta com a noite, quando a cena é dominada pelas prostitutas e a cidade submerge até o amanhecer em um silêncio cúmplice dos segredos de alcova. É nesse passado boêmio que o escritor, tradutor e professor Aldyr Garcia Schlee mergulhou para escrever Contos da Vida Difícil (Editora ARdoTEmpo, 184 páginas, R$ 35), seu mais recente livro, lançado na centenária Bibliotheca Pública Pelotense.

A cidade era rota do tráfico de mulheres provenientes de Montevidéu e Buenos Aires. Uma escala enquanto aguardavam o embarque para o Rio de Janeiro por meio do porto de Rio Grande. É pelos cabarés de luxo que fizeram a fama das cidades siamesas que os personagens de Schlee transitam. Ou mesmo pelos pardieiros – chamados de “peixe” – na orla da praia, junto à curva do rio Jaguarão. As histórias estão interligadas por certa dose de melancolia, impedindo a separação entre um conto e outro. Schlee muitas vezes recorre,com um exagero proposital, à repetição de trechos como forma de prender o leitor aos detalhes e à nostalgia daqueles tempos em que a prostituição era assunto proibido. Histórias que o perseguiam desde a infância e o começo da adolescência, como a do tio que largou tudo e se enfiou no chinaredo de uma cafetina uruguaia para viver com a louca Ignez. Sobre a cama, palco do tórrido romance, a faixa carnavalesca com os dizeres: “Viva eu, viva ela, viva o rabo da cadela”. Em outros momentos, Schlee recorre a personagens de antigos contos como Artigas Guinchón, que aparece em Linha Divisória, também ambientado na fronteira.

Em Contos da Vida Difícil, famosos proxenetas, mafiosos e cafetinas ganham nome e sobrenome graças à tese da historiadora Yvette Trochon: Las Rutas de Eros – La Trata de Blancas en el Atlántico Sur. Argentina, Brasil y Uruguay (1880 – 1932). A obra, impressa em Montevidéu (Taurus, 2006), serviu para Schlee enriquecer o imaginário em torno daquelas mulheres polacas com rosto de bonecas de louça, frequentadoras do cabaré do Tomazinho. O lugar é o palacete com sacadas para a rua, porta em relevo e platibanda ornada que hoje é sede do Clube Instrução e Recreio, no centro de Jaguarão.

Mas não há glamourização do tema. Pelo contrário. As misérias da chamada vida fácil estão latentes em contos como R.S., em que a decadente Sara vive sozinha, velha e embriagada, agarrada em uma garrafa de licor de anis Carabanchel, cultivando apenas a lembrança do seu grande amor, Ruby, adolescente americana que, como ela, trabalhava como corista pelos cabarés do Brooklyn. Um tempo, como diz o autor, em que a “clandestinidade do gim libertava a paixão de mulheres por mulheres”. Ruby se tornou uma estrela de Hollywood, uma imagem que Sara só podia ver na tela quando cruzava a ponte Barão de Mauá para ir ao Cine Rio Branco. Schlee não diz de forma explícita, mas, ao listar filmes como Noites da Broadway e Mulher Sem Algemas, revela que a atriz é Barbara Stanwyck, nascida Ruby Stevens.

O livro é um convite para penetrar no universo dessas mulheres. Há desde a traída pelo marido que resolve se prostituir no famoso Mangacha, em Rio Grande, até a atriz decadente, uma misteriosa ruiva que se apresentou no Teatro Esperança, interpretando um tango sofrível e que, nas horas vagas, era oferecida para uma sessão de sexo privê. Enfim, um retrato fiel de um tempo que o autor testemunhou, mesmo que com a inocência do guri que comia cascudo e um dia tropeçara nas pernas de uma diva. Ao final, Schlee engata em sequência três contos em homenagem à musica, ao teatro e ao cinema, com personagens como Violeta, que soam como pastiche de alguma marafona gorda da Broadway citada em Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, ou como remissões de um filme de Pietro Germi, Seducida y Abandonada, que o autor aproveita para discutir o tabu da virgindade. Prestes a completar 79 anos, em novembro, Schlee vem produzindo em um ritmo frenético desde o romance épico Dom Frutos (2010), história do caudilho uruguaio José Fructuoso Rivera (1784 – 1854) narrada em mais de 500 páginas. Lançou, em 2009, Os Limites do Impossível, a partir da ideia estarrecedora de que o nascimento de Carlos Gardel ocorreu em Tacuarembó, no Uruguai, fruto de incesto e estupro. Neste ano, teve reeditada a coletânea de contos O Dia em que o Papa foi a Melo.


Atualmente, Schlee divide seu tempo ora com palestras sobre a obra de Simões Lopes Neto, ora se divertindo ao comparar várias versões – até o original latino – de A Arte de Amar, do poeta romano Ovídio. Já estão a caminho dois outros livros, um deles, Contos com Espelhos, um ambicioso diálogo com a ficção de Jorge Luis Borges, a partir de uma referência da passagem do famoso escritor por Jaguarão. Desde a publicação de Dom Frutos, contudo, se diz mais seguro,  com os personagens sob sua rédea, ou melhor, controle, uma luta que encara com prazer em seu sítio no Capão do Leão, nos arredores de Pelotas, diante de uma imensa maquete de zinco da ponte Mauá, presente que ganhou aos 10 anos.
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Publicado no Clic RBS
Klécio Santos é jornalista e diretor da sucursal da RBS em Brasília
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