O livro de Schlee, publicado pela ardotempo. Foto de Gilberto Perin |
Uma incursão pelos cabarés
Klécio Santos (*)
O cenário é
Jaguarão, à época em que a fronteiriça cidade vivia a epopeia da construção da
ponte internacional Mauá, inaugurada em 1930. O agito durante o dia, de
marinheiros e operários, contrasta com a noite, quando a cena é dominada
pelas prostitutas e a cidade submerge até o amanhecer em um silêncio
cúmplice dos segredos de alcova. É nesse passado boêmio que o
escritor, tradutor e professor Aldyr Garcia Schlee mergulhou
para escrever Contos da Vida Difícil (Editora ARdoTEmpo, 184
páginas, R$ 35), seu mais recente livro, lançado na centenária Bibliotheca
Pública Pelotense.
A cidade era
rota do tráfico de mulheres provenientes de Montevidéu e Buenos
Aires. Uma escala enquanto aguardavam o embarque para o Rio
de Janeiro por meio do porto de Rio Grande. É pelos cabarés de luxo
que fizeram a fama das cidades siamesas que os personagens de Schlee
transitam. Ou mesmo pelos pardieiros – chamados de “peixe” – na orla
da praia, junto à curva do rio Jaguarão. As histórias estão interligadas por
certa dose de melancolia, impedindo a separação entre um conto e outro.
Schlee muitas vezes recorre,com um exagero proposital, à repetição de
trechos como forma de prender o leitor aos detalhes e à nostalgia
daqueles tempos em que a prostituição era assunto proibido. Histórias que
o perseguiam desde a infância e o começo da adolescência, como a do
tio que largou tudo e se enfiou no chinaredo de uma cafetina uruguaia
para viver com a louca Ignez. Sobre a cama, palco do tórrido romance,
a faixa carnavalesca com os dizeres: “Viva eu, viva ela, viva o rabo
da cadela”. Em outros momentos, Schlee recorre a personagens de
antigos contos como Artigas Guinchón, que aparece em Linha
Divisória, também ambientado na fronteira.
Em Contos
da Vida Difícil, famosos proxenetas, mafiosos e cafetinas ganham nome
e sobrenome graças à tese da historiadora Yvette Trochon: Las Rutas
de Eros – La Trata de Blancas en el Atlántico Sur. Argentina, Brasil y
Uruguay (1880 – 1932). A obra, impressa em Montevidéu (Taurus, 2006),
serviu para Schlee enriquecer o imaginário em torno daquelas mulheres
polacas com rosto de bonecas de louça, frequentadoras do cabaré do
Tomazinho. O lugar é o palacete com sacadas para a rua, porta em
relevo e platibanda ornada que hoje é sede do Clube Instrução
e Recreio, no centro de Jaguarão.
Mas não há
glamourização do tema. Pelo contrário. As misérias da chamada vida
fácil estão latentes em contos como R.S., em que a decadente Sara
vive sozinha, velha e embriagada, agarrada em uma garrafa de licor de
anis Carabanchel, cultivando apenas a lembrança do seu grande amor,
Ruby, adolescente americana que, como ela, trabalhava como corista pelos
cabarés do Brooklyn. Um tempo, como diz o autor, em que a “clandestinidade
do gim libertava a paixão de mulheres por mulheres”. Ruby se tornou
uma estrela de Hollywood, uma imagem que Sara só podia ver na
tela quando cruzava a ponte Barão de Mauá para ir ao Cine Rio Branco.
Schlee não diz de forma explícita, mas, ao listar filmes como Noites
da Broadway e Mulher Sem Algemas, revela que a atriz é Barbara Stanwyck,
nascida Ruby Stevens.
O livro é um
convite para penetrar no universo dessas mulheres. Há desde a
traída pelo marido que resolve se prostituir no famoso Mangacha,
em Rio Grande, até a atriz decadente, uma misteriosa ruiva que se
apresentou no Teatro Esperança, interpretando um tango sofrível e
que, nas horas vagas, era oferecida para uma sessão de sexo privê.
Enfim, um retrato fiel de um tempo que o autor testemunhou, mesmo que
com a inocência do guri que comia cascudo e um dia tropeçara
nas pernas de uma diva. Ao final, Schlee engata em sequência três
contos em homenagem à musica, ao teatro e ao cinema, com personagens
como Violeta, que soam como pastiche de alguma marafona gorda da
Broadway citada em Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill,
ou como remissões de um filme de Pietro Germi, Seducida y
Abandonada, que o autor aproveita para discutir o tabu da
virgindade. Prestes a completar 79 anos, em novembro, Schlee vem
produzindo em um ritmo frenético desde o romance épico Dom Frutos (2010),
história do caudilho uruguaio José Fructuoso Rivera (1784 – 1854)
narrada em mais de 500 páginas. Lançou, em 2009, Os Limites do
Impossível, a partir da ideia estarrecedora de que o nascimento de
Carlos Gardel ocorreu em Tacuarembó, no Uruguai, fruto de incesto e
estupro. Neste ano, teve reeditada a coletânea de contos O Dia
em que o Papa foi a Melo.
Atualmente,
Schlee divide seu tempo ora com palestras sobre a obra de Simões Lopes
Neto, ora se divertindo ao comparar várias versões – até o
original latino – de A Arte de Amar, do poeta romano Ovídio. Já
estão a caminho dois outros livros, um deles, Contos com Espelhos, um
ambicioso diálogo com a ficção de Jorge Luis Borges, a partir de
uma referência da passagem do famoso escritor por Jaguarão. Desde a
publicação de Dom Frutos, contudo, se diz mais seguro, com
os personagens sob sua rédea, ou melhor, controle, uma luta que
encara com prazer em seu sítio no Capão do Leão, nos arredores de
Pelotas, diante de uma imensa maquete de zinco da ponte Mauá,
presente que ganhou aos 10 anos.
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Publicado no Clic RBS
Klécio Santos é jornalista e diretor da sucursal da RBS em Brasília
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