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O, Captain! My Captain, Fernandão
Pedro Moacyr Pérez da Silveira (*)
Em 1989, o
diretor australiano Peter Weir, lançou o filme “Dead Poets Society” (Sociedade
dos Poetas Mortos). Estrelado por Robin Williams, as telas mostraram a chegada
de um novo professor de língua e literatura inglesa na conservadora e
centenária escola preparatória Welton, no estado de Vermont, Estados Unidos. O
docente de tal disciplina é, a exemplo de todos, um homem rígido, sem qualquer
flexibilidade interpretativa e adepto de um tipo de disciplinamento militar de
seus alunos. O novo professor, contudo (um ex-estudante da mesma escola, e nela
bastante destacado), traz consigo novas formas de ensinar e critérios
alternativos para lidar com poemas. Seu nome era John Keating, em clara alusão
a John Keats, uma expressiva figura do romantismo inglês, escola de literatura
vigorante na Grã-Bretanha entre a segunda metade do século XVIII e a primeira
do XIX. Pois Keating, um professor emocionante, uma espécie de personificação
da ruptura necessária com o padrão de ensinamento da instituição, logo vai
ensinando a seus discentes a expressão “O, Captain! My Captain!, reverberando
em sala de aula o título de famosa poesia de Walt Whitman dedicada a Abraham
Lincoln.
Keating
ensina-lhes a frase de Horácio, poeta latino que viveu pouco antes da Era
Cristã, “carpe diem”, para lhes dizer que “aproveitem o dia”, pois o futuro é
impreciso e não antecipável. Sugere que o chamem assim, de “capitão”, ao mesmo
tempo em que os leva a uma caverna onde, aos tempos em que era aluno, criara
com seus colegas uma agremiação a que deram o nome de “Sociedade dos Poetas
Mortos”, onde liam poema e também os escreviam, sempre sem darem notícia aos
dirigentes escolares, ou mesmo a qualquer professor. A aventura juvenil
produzia um entusiasmo poético em seus membros, e lhes aumentava a criatividade
e a capacidade de amarem, partilhando as belas coisas da literatura e
aprendendo a doce estruturação estética do mundo dos poetas.
Ao começo desta
madrugada, faleceu Fernando Lúcio da Costa, o Fernandão, ex-capitão colorado na
conquista da Taça Libertadores da América e do Mundial Interclubes de 2006.
Fernandão sempre
me pareceu um atleta gentil, educado, sofisticado ao falar, e capaz do
exercício de comando como poucos nas linhas dos gramados onde se pratica o
futebol. Não digo isso porque o Sport Club Internacional é o clube do meu
coração, o escrete que me enfeitiça desde criança, e a cujos títulos nacionais
(1975, 1976 e 1979) tive a oportunidade de assistir ao vivo, no Estádio
Beira-Rio, ao tempo em que, circundando o campo, havia um anel humano
circundando-o por inteiro, conhecido por “coréia”, que aquele tempo – e em
reverência a ele – escrevo aqui com acento, existente e obrigatório àquela
época na grafia portuguesa. Pois quis o destino que Fernandão fosse o único
capitão de meu time que nos conduziu à vitória em um campeonato mundial, cujo
galardão do título ainda muito honra, e honrará para sempre, este torcedor e os
seus companheiros torcedores da equipe da Padre Cacique.
Não sei o que
escrever sobre uma juventude que se termina em uma queda de helicóptero (esses
aparelhos não parecem ter sido criados para bem voar...). Não sei o que
escrever sobre um homem, pouco mais do que um menino, que tanto admirei por
suas qualidades em campo (sempre muito técnico e com muita noção espacial) e
por sua elegância expressional. Ele falava como jogava, distribuindo bem as
coisas, encontrando a palavra certa como quem localiza um pequeno local embaixo
das goleiras para ali enfiar uma precisa bola. Não sei o que dizer de um atleta
que, por conta dessas magias do encanto inexplicável, se tornou admirado por um
professor de filosofia como eu, habitualmente apreciador de outra organização
do pensamento, que não a passional. Não sei o que dizer sobre o estar e o não
estar mais; sobre o ser e o não ser mais; sobre o vir para cá um tempo e ir-se
para sempre para um lugar que meramente imaginamos. Não sei o que dizer sobre
aquele rapaz de cabelos alongados, máscula expressão, beleza física
estimuladora do universo feminino. Não sei, enfim, o que dizer sobre o partir cedo
quando talvez sempre não pareça a hora de nos irmos.
Vou me despedir
de Fernandão de forma simples e por demais elementar, mas não estou convencido
de que haja alguma complexidade na vida, a não ser dentro de nós.
Ontem, dentre as
brincadeiras que por aqui costumo deixar, brincando com palavras, localizando
absurdos, veiculando disparates, procurando algum efeito semântico, escrevi que
“a vida é assim, um dia antes do outro. O resto é especulação”. Poucas horas
depois, Fernandão, que ainda aqui estava, poderia ter lido algo assim e ter-se
visto perfeitamente incorporado ao ontem e ao hoje. Ao amanhã, não estaria
mais.
“Carpe diem”,
imagino que ele terá vontade de dizer agora, se lhe for possível olhar por
sobre a humanidade, esse grupamento formado por seres mortais como mosquitos.
Enquanto imagino isso, e dele recordo com a braçadeira do líder, levando
adiante meu time com a coragem que é preciso ter para jogar esse esporte,
viajando sem parar, recebendo elogios ou críticas ao mero bem ou mal chutar, sorrindo
ou chorando em acordo com a aleatoriedade do que lhe proporciona uma profissão
que requer o domínio de algo redondo, que gira e se eleva, e não tem dono.
A esse rapaz, a
esse homem muito jovem, minhas lembranças me recordam o professor Keating, e eu
lhe digo, comovido e desejando que fique em paz e lhe seja leve a terra:
“O, Captain! My Captain,
Fernandão".
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(*) Pedro Moacyr e advogado, professor de Filosofia do Direito e Doutor em Educação. E é de Bagé, claro.
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