6 de setembro de 2014

Eu sempre lembrarei



O ator Paulo José


Eu sempre lembrarei
 
Paulo José (*)

“Eu me lembro do meu primeiro encontro com Porto Alegre. A família vinha de Bagé, de carro, era noite. Eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. 

Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes: a Piazza San Marco, em Veneza, o arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Parlament House com o Big Ben, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi meu primeiro alumbramento. 

Eu me lembro que o pão dos pobres ficava nas margens do Guaíba, lá onde a cidade acabava. Eu me lembro que a Lancheria das lojas Americanas era o ponto chique da cidade. Eu me lembro que tinha até Banana Split. Eu me lembro que eu sabia de cor todas as transversais da Avenida Independência, do colégio do Rosário à Praça Júlio de Castilhos: Rua Barros Cassal, Rua Thomaz Flores, Rua Garibaldi, Rua Santo Antonio, Rua João Telles. Eu me lembro da Pantaleão Teles, da Cabo Rocha, American Boite, Maipu, Gruta Azul. Eu me lembro do conjunto Norberto Baldauf, da Orquestra Espetáculo Cassino de Sevilha, do Conjunto Farroupilha, dos Quitandinhas Serenaders: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora…”.
 
Lembro da tristeza da minha mãe quando emprestei o violão do meu irmão para um baiano que estava passando uns tempos aqui em Porto Alegre. Eu me lembro que o meu violão nunca mais voltou e que o baiano se chamava João Gilberto.
 
Lembro do Hino Rosariense. Lembro que Maria Della Costa era garota da capa da revista O Globo, e tinha as pernas mais lindas do mundo. Lembro dos festivais Tom & Jerry nas manhãs de domingo no Cinema Avenida, das matinês do Cinema Victória, dos cinemas Rex, Roxi, Imperial, Cacique. Lembro do mezanino do Cinema Cacique, que servia a última novidade em gelados, o Peach Melba. Lembro que todo mundo detestava os filmes do Cecil B. de Mille, exceto o público. Lembro que no abrigo dos bondes da Praça VX podia-se beber o caldo da salada de frutas, sem frutas, apenas seus vestígios. Aquela água era néctar dos deuses. Lembro do Vicente Rao, do Bataclan, do Bric ao Belchior, do Senhor Joaquim da Cunha, do Farolito e da China Gorda. Lembro que pela margem direita eram o Javaí, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, e pela esquerda o Japurá, Negro, Trombetas, Parus e Jari. Eu me lembro que meus professores diziam que ensinamentos como esses seriam de grande utilidade para a vida. Lembro do irmão Ary, professor de biologia, recusando-se a falar da teoria de Darwin: “Quem quiser que descenda do macaco, eu descendo de Adão e Eva”. Lembro que ele nos preparava para o vestibular de medicina. Eu lembro do Pervitin que a gente tomava para passar a noite estudando e tirava nota ruim no dia seguinte. Lembro do Rodouro Metálico e seu jato gelado que fazia tudo girar. Lembro do Gin Fizz, do Hi-Fi, do Alexander, da mistura de Coca-Cola com cachaça que levava o nome apropriadíssimo de Samba em Berlim. 

Lembro do footing da Rua da Praia, onde a gente exibia a camisa volta-ao-mundo, de nylon, e que diziam que iria revolucionar o vestuário masculino. Lembro das calças de Brim Coringa Farwest. Lembro que a deusa da minha rua era a Maria Thereza Goulart, que não era ainda Goulart. Ela morava no edifício Glória e recebia visitas misteriosas de um João, este sim, Goulart, que era invejado por toda a garotada da Barros Cassal. 

Eu me lembro do tempo em que futebol se jogava com goleiro, com dois beques, três na linha média e cinco no ataque e que, em geral, faziam-se gols. Eu me lembro do time do Inter, imbatível, nos anos 50: La Paz, Florindo e Oreco, Paulinho, Salvador e Odorico, Luizinho, Bodinho, Larry, Jerônimo e Canhotinho. Eu me lembro de um tempo sem malícia, quando o estádio dos Eucaliptos torcia, gritando em coro: Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado, Co-Co-Colorado. Eu me lembro do Café Andradas, onde a gente ia matar aula e encontrava o Henrique Fuhro. O Abujamra, que anunciava tragicamente: “O homem é uma paixão inútil! Mais um café, Macedo”. Eu me lembro do Bar Matheus, na Praça da Alfândega, da Pavesa do Treviso, da cadeira pendurada na parede, onde sentou Chico Viola. Da Sopa do mocotó levanta-defunto do Mercado Público, do sanduíche aberto do Bar Líder, daquela mostarda amarela do Galeto da Marreta e, por fim, do cachorro quente da praça do Colégio N. Sra. Do Rosário, sem favor nenhum, o melhor do mundo.
 
“O sabonete Cinta Azul
Tem o prazer de apresentar
Um novo filme de caubói
Bat Masterson, Bat Masterson”

“Phimatosan,
Quando você tossir,
Phimatosan,
Se a tosse repetir”

“Ela é linda, aah!
É noiva, Ooh!
Usa Ponds, aah!”

Eu me lembro do desodorante para privadas Desodor, “libera o ambiente dos odores estranhos”, do Detefon, do espiral Boa-Noite, da cera Parquetina, da creolina Cruswaldina, do formicida Tatu. Eu me lembro que o Jeca Tatu tinha verminose, era pálido, maltrapilho, preguiçoso e roubado pelo patrão. E era um herói nacional… Eu me lembro das missas rezadas em latim, dos padres de batina e do seu indisfarçável sotaque da colônia: “caríssimos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Naquele tempo, vindo Jesus com os seus discípulos”…
 
Eu me lembro da Glostora, da Antisardina, “o segredo da beleza feminina”, Odorono, Cashmere Bouquet, “o aristocrata dos produtos femininos”, Lusaform Primo, poderoso desinfetante contra frieiras, pé-de-atleta, CC – cheiro de corpo, mau hálito e pós-barba. Eu me lembro de um perfume da fábrica Colibri, Água de cheiro Amor Gaúcho. 

Eu me lembro de Ildo Meneghetti, o candidato invencível, e me lembro de sua quase absurda honestidade, quando declarou: “Meu maior erro foi ter derrotado Alberto Pasqualini, ele tinha um plano de governo e eu, não”.
 
Eu me lembro do 24 de agosto de 1954. A morte de Getúlio se alastrando pela cidade, incendiando a Rádio Farroupilha, empastelando o Diário de Noticias, destruindo a sede da UDN, depredando tudo que tivesse nome americano: O consulado, as Lojas Americanas, até a American Boite… Eu me lembro do P.F. Gastal, criador do Clube de Cinema e que me apresentou a alguns gênios da tela. Um deles, contava Gastal, se apresentou para uma plateia de apenas quatro pessoas, em Berlim, dizendo: “Sou ator de teatro, cinema, escrevo contos, programas de rádios, tv, dirijo filmes, peças, sou ventríloquo, ilusionista, mágico. Pena eu ser tantos e vocês, tão poucos. Meu nome é Orson Welles”. Eu me lembro do Teatro de Equipe, na General Vitorino, do Teatro de Belas Artes, na Senhor dos Passos, e da Confeitaria Atlântica, na Praça Dom Feliciano, ponto de encontro e desencontros dos artistas, do Theatro São Pedro.
 
Eu me lembro que nós, Luiz de Matos, Ivete Brandalise, Peréio, Ilda Maria, Mario de Almeida e tantos outros, trabalhávamos como diretores, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, contrarregras. Eu me lembro que às vezes, eu tinha sensação de que éramos tantos e vocês, tão poucos… Mas, eu me lembro que “qualquer prazer me diverte e qualquer morena me interte”! 

Eu me lembro que a Livraria do Globo era uma loja que vendia livros… Eu me lembro do Loxas, do Janjão, do Sunda… Mas, sobretudo, eu me lembro do Mário, aquele… Eu me lembro que: “Não adianta bater, que eu não deixo você entrar”.
 
Eu me lembro da Emulsão de Scott, do Calcigenol Irradiado, do Peitoral de Angico Pelotense, da Pomada Minâncora, das Pílulas da Vida do Dr. Ross “fazem bem ao fígado de todos nós”, do regulador Xavier, “vive melhor a mulher”, do Pó Pelotense, do Vinho Reconstituinte Silva Araújo, “V de Vida, R de resistente, S de saúde e A de alegria”. Do Rum Creosotado e dos reclames dos bondes da Carris: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado, e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite e salvou-o o Rum Creosotado”. 

Eu me lembro, sempre, de não confundir Capitão-de-fragata com cafetão-de-gravata. Eu me lembro que até os craques da locução confundiam “alhos com bugalhos”. Ernani Behs, a máxima voz da Rádio Farroupilha uma noite anunciou, solenemente: “Transmitindo do alto do Viadeiro Borges de Meduto…”. Eu me lembro que “Belarmino tinha uma flauta, a flauta do Belarmino, sua mãe sempre dizia, toca flauta Belarmino”.
 
“Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão… Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão da boca e botava a mão…”
 
Eu me lembro que: “Até a pé nos iremos, para o que der e vier…” Eu me lembro de que não foi exatamente a pé, mas atravessando o mundo, de avião, que o Grêmio conquistou o campeonato Mundial de Clubes. E até os colorados se renderam ao show de bola do Renato, Mário Sérgio e demais heróis tricolores. “Até o Japão nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos...” 

Eu me lembro que: “O pensamento parece uma coisa á toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar…”
 
Eu me lembro do programa Maurício Sobrinho, do Clube do Guri e de uma caloura que diziam ser a nova Ângela Maria. Eu me lembro que ela morava na Cidade Baixa e se chamava Elis Regina. Eu me lembro de uns versos:
 
“Elis, quando ela canta me lembra um pássaro,
Mas não um pássaro cantando,
Me lembra um pássaro voando”.
Eu me lembro de uns Quintanares:
“Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(è nem que fosse meu corpo)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(e há uma rua encantada
que nem nos sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira
Ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave, mistério amoroso,
Cidade do meu andar
(desde já tão longe andar!)
E talvez do meu repouso…”

Eu me lembro de que o Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento. Era um guri de Lavras, chegando nesta Cidade Grande. Esta cidade que me acolheu. Nela cresci, me fiz homem, aprendi ofício. Devo isso tudo a Porto Alegre. Hoje realizo uma fantasia de adolescência: Ser Porto-Alegrense. Hoje, eu sou um cidadão da cidade que tem o viaduto Otávio Rocha, orgulhosamente.
 
Agradeço a homenagem que me emociona, me toca fundo no coração. Eu sempre lembrarei disso, sempre lembrarei, e me lembrarei.
Obrigado”
____________________
(*) O Ator gaúcho Paulo José, nascido em Lavras do Sul, recebeu em agosto de 1999 o título de Cidadão de Porto Alegre. Seu discurso de agradecimento faz parte dos Anais da Câmara Municipal de Porto Alegre.
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6 comentários:

Anônimo disse...

Vaz,

E eu sempre lembrarei a noite que avisaram no restaurante do pai - Esquina Bianchetti - em Bagé, que Paulo José e a Dina Sfat queriam jantar lá num local reservado com o tio Pedrinho Bianchetti, que era amigo de infãncia do pai do Paulo.
Eu tinha uns 10 anos, vi fascinado a família correr de um lado para o outro, para oferecer o melhor para o casal de atores globais.
Dina fazia um enorme sucesso como a protagonista da novela das 20 horas, lembro bem, tinha o nome de Paloma, que depois todos ficaram boquiabertos porque ela segredou não gostar do papel. Contracenava como o Tarcisio Meira e Francisco Cuoco, " os caras " na época.
De cara virei fâ dela quando, ao muito timidamente, fui pedir um autógrafo ( que aparece no blog na postagem de 23/11/2010 ), ela rápida disse para o marido " faz um para ele Paulo ", e os dois assinaram.
Depois quando os pais do Paulo José apareciam para almoçar, que eram simpatíssimos comigo, eu sempre perguntava pela Dina. E pelos bichos da fazenda de Lavras, se sabia em família que o pai do Paulo não deixava ninguém caçar na propriedade de Lavras, onde a rica fauna ainda preservava animais já exterminados em outras regiões.
Assisti Dina no teatro em Porto Alegre, já estudante, economizei e fui ver uma peça de Ibsen, muito para a minha cabeça na época, mas ela estava bárbara, e parece que já apareciam sinais da doença que a levaria, mas ela estava lá, linda, no palco.
Abraço
Gerson Oliveira

Maribel disse...

Que lindas palavras! Que linda a pessoa desse gaúcho: Paulo José!

Luiz Carlos Vaz disse...

A postagem a que se refere o Gerson pode ser lida neste link:

http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com.br/2010/11/historias-de-familia-v-o-imperador-do.html

Um abraço, e obrigado por comentar, meu amigo.
Vaz

Luiz Carlos Vaz disse...

Palavras que me emocionaram, Maribel, por isso as transcrevi.
Obrigado por comentar aqui.
Vaz

Anônimo disse...

Vazamigo

Não conhecia Paulo José, mas por este texto fiquei a saber a classe que ele tinha.

Um texto interessantíssimo a que só falta o Terreiro do Paço (ou Praça do Comércio) na nossa Lisboa; mas penso que ele não o tenha visto. Tu que o viste-o e penso que concordas comigo.

Achei uma gracinha a Maribel a comentar aqui...

E quando voltas à nossa Travessa. Pelo menos verás - e comentarás o NA PRIMEIRA PESSOA... Valeu?

Qjs & abçs em especial à Maribel

Luiz Carlos Vaz disse...

Ferreiramigo, neste link podes entender melhor nossa preocupação com o Paulo:

http://www.terra.com.br/istoegente/61/entrevista/

Um abraço do lado de cá.
Vaz