29 de agosto de 2017

O Codex Romanoff

Meu Codex descansa novamente na prateleira

O Codex Romanoff

Luiz Carlos Vaz

Quem me conhece (ou pensa que...) sabe o pânico que tenho de emprestar livros. Os Livros quando saem pela porta são como bumerangues... não retornam para nossas mãos com aquela maestria só possível aos australianos. Tenho ainda hoje um único livro (um?) fora de casa, um da Liv Ulmann, que é de suas memórias, e que não acho mais nem para comprar. Emprestei em 1979, no século passado, para uma amiga chamada “Mari”... ela estudava na UCPel. Ela era amiga lá de casa, levava, lia e retornava com nossos livros, até que um dia ela se mudou... se formou... voltou para sua cidade natal... não sei... só sei que não conseguiu devolver o livro das memórias da Liv Ulmann, Mutações. Sempre procuro por ele nos sebos. O livro tem meu nome assinado, bem legível, e o ano da compra, tipo 1978 ou 79... Pode ser que um dia esse “bumerangue” volte para minhas mãos, ou quem sabe caia nas de vocês, que comprarão no sebo e me darão de presente, conquistando assim minha eterna e incondicional gratidão.

Outro dia me reencontrei com uma das minhas relíquias que já dava por perdida, que é o raríssimo Codex Romanoff - os cadernos de cozinha, de Leonardo Da Vinci, baseado em manuscritos descobertos, vejam só, apenas em 1980. Há muita polêmica sobre a autenticidade da obra, mas as anotações sobre os alimentos e bebidas da época da renascença, as “regras de etiqueta à mesa, os desenhos de panelas, tampas, garfos, conchas, coadores e outras parafernálias absolutamente necessárias para uma cozinha lógica estão lá. E com a assinatura dele. 

Esses aparatos trazem a marca da genialidade e da vanguarda de Leonardo. Mas, confesso, nunca tentei fazer as receitas das sopas ditadas por ele, pois parecem horríveis... Fazer o tal Cordeiro na Manteiga então nem se fala, resultaria no rompimento definitivo da relação médico/paciente com o meu cardiologista, Dr Cláudio Gomes. 

Dicas de como comer alcachofras, propriedades da beldroega, lista de insetos comestíveis... olha, quando tenho essas tentações e manuseio o Codex... trato de me concentrar no Da Vinci Gênio da Arte. Menos a da Culinária.
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Luiz Carlos Vaz

19 de agosto de 2017

O Dia da Criação

A Criação de Adão, afresco de 2m e 80 cm por 5m e 70 cm, 
pintado por Michelangelo Buonarotti, por volta do ano de 1511, 
no teto da Capela Sistina, em Roma.

O dia da criação

Vinicius de Moraes
Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27

I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

III
Por todas essas razões deveria ter sido riscado do Livro das Origens,
o Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, frequentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia, e sim no Sétimo.
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Porque era sábado.

16 de agosto de 2017

Padre Felício, 514

Foto Eliana Valença

Padre Felício, 514

Eliana Valença

Padre Felício, 514... uma das primeiras referências na nova cidade, vindos de Bagé, a família inteira cheia de esperanças, sonhos e uma estrada pela frente.

E a casa da Dinda e Dindo foi abrigando histórias, muitas costuras fazendo a moda, muito artesanato em lã, tricô e crochê. E momentos inesquecíveis vivemos ali e lágrimas de saudade derramamos quando eles, os avós (para nós sinônimo de dindos)se foram...

E ali virou a casa da tia e algum tempo depois, das tias. Mais histórias, muito embelezamento feminino, unhas impecáveis... e  a família crescendo, se desdobrando: filhos, netos, bisnetos...

E todos tem um pedacinho de suas vidas contados nas paredes daquela casa.
Depois foi a vez da alegria e meninice do  amado  “veinho” nos deixar... e a casa ficou  triste!

Mas as tias retomaram a vida, cada uma do seu jeito e a casa sempre tinha vida e movimento.

Aos poucos, as temporadas de casa vazia foram aumentando, as tias se adaptando  em outras cidades e a ideia de vender a casa foi a saída mais prudente.

E nunca se pensou que daria tanto trabalho, tanta papelada a providenciar, tanto baú a esvaziar, tantas lembranças despertadas por objetos de grande valor emocional, que serão guardados com carinho, fotos antigas, tantos sentimentos revirados... muito além dos móveis e utensílios da casa.

Amanhã, grande parte da família, depois de muitos percalços (rssss), vai assinar a venda da casa. E parte de nossas histórias vai ficar nas paredes daquela casa.

Mas o que realmente importa é o que vivemos lá e que se incorporou em nossas vidas como experiências, alegrias  e tristezas. E principalmente o exemplo de bondade, retidão, amor e justiça, esse legado, essa verdadeira herança que o Dindo e Dinda nos deixaram, ali, disponível para seguir, se assim quisermos, a cada escolha, a cada atitude de nossas vidas.

Eliana Valença


2 de agosto de 2017