15 de dezembro de 2019

Faleceu o "Padre" Carlos

Foto publicada na rede social
Sergio Saraiva (*)


Meu professor de religião no Colégio Estadual de Bagé, o padre Carlos Moraes, depois colega jornalista e escritor (me antecedeu no Prêmio Jabuti), foi o preso político mais próximo dos meus tempos de guri já comprometido com as coisas do mundo. Pegou cadeia no início dos 70 por ser dissidente da ditadura, sem cometer crime algum, num local que depois virou mercado. Na sua antiga cela se vendia flores. Irmão do meu professor de português Guido Moraes. Tentei encontrá-lo em São Paulo, onde trabalhei alguns anos, e sei da sua amizade com gente amiga que muito prezo. Foi da equipe da revista Realidade e depois editor das revistas de bordo da Varig (Ícaro) e Transbrasil. Que pena que não o reencontrei antes dessa notícia triste. Aos 78 anos completados dia 14. Jovem, muito jovem.

Eduardo Tavares (**)


Muito triste com a partida repentina do amigo jornalista,escritor e professor Carlos Moraes. Gaúcho de Lavras do Sul,radicado em São Paulo, foi da equipe da Realidade, editor da Ícaro, Transbrasil e autor de diversos livros e vencedor do Prêmio Jabuti. Uma pessoa íntegra, generosa e muito bem humorada.

Que tristeza... Mais um cara sensível que se vai. Pra quem não sabe quem foi Carlos Moraes, o amigo Sérgio Saraiva fez uma pequena síntese desse grande humanista.

"Gaúcho de Cerro Branco, distrito de Lavras do Sul (RS), mudou-se para Bagé ainda criança. De família religiosa, entrou para o seminário aos 12 anos e foi ordenado sacerdote aos 25, já durante a Ditadura Militar. Após sete anos de sacerdócio, em 1972, foi julgado e preso pelo regime militar com base na Lei de Segurança Nacional. Seus sermões incisivos provocaram a ira dos militares de Bagé, cidade onde havia “muito quartel para pouco comunista. Por isso, quando os comunistas acabaram, eles começaram a perseguir seus assemelhados”.


Na cadeia havia cerca de 100 presos, todos por crimes leves, outros com certas perturbações psicológicas. “Havia a maior concentração de filósofos e ladrões de ovelha por metro quadrado”. A rotina era tomada por partidas de futebol disputadas entre torcedores do Internacional contra torcedores do Grêmio, casados contra solteiros, negros contra brancos. “Tinha vontade de dividir os times de acordo com o código penal também: assaltante de sítio contra assalto a mão armada, ladrão de joias contra ladrão de ovelhas”.

As memórias inspiraram o semi-biográfico Agora Deus vai te pegar lá fora – Anotações de um padre preso numa cidade sem zoológico (Record, 2004). Nele, conta a história de um padre à espera de dois alvarás de soltura: um espiritual e outro material. Um vindo de Roma, no qual pede dispensa de seus votos religiosos, e outro de Brasília, em que apela de sua condenação pela Justiça Militar da época. O autor mistura realidade e ficção, dedicando às cenas mais surrealistas a maior dose de veracidade, e recheando com cruciantes reflexões dos tempos de cárcere. “Falam muito em espírito de cantina, corporativismo, e tal, mas acho que todo homem tem direito, sim, a uma rua do mundo onde possa caminhar sem um juiz a cada esquina, e se desabotoar um pouco das vãs expectativas a seu respeito, e se sentir querido mesmo por quem sabe da sua miséria. Uma rua onde, acossado, ele possa bater pique como nas brincadeiras de infância. Essa rua pode ser alguém”.

Após 8 meses de prisão, foi libertado e radicou-se em São Paulo (SP), onde teve seu “primeiro jeans, o primeiro cheque, foi pela primeira vez a uma festa, teve seu primeiro amor”. O período pós-sacerdócio a encarar o mundo a seco inspiraram outra obra, Desculpem, sou novo aqui (Record, 2009), na qual o autor narra as peripécias de um padre que larga a batina para conseguir um emprego na cidade grande. As situações inusitadas de um interiorano, virgem de maledicências, desembarcando na metrópole que nunca dorme, explora as dificuldades e contradições cotidianas do personagem principal descobrindo o mundo, o amor e o Corinthians.

O processo ainda corria em Roma quando Carlos Moraes foi estudar jornalismo na Fundação Cásper Líbero. Logo conseguiu um emprego na revista Realidade, onde uma das primeiras pautas propostas a ele foi sobre a primeira noite de um ex-padre. “Brincavam comigo, diziam para eu espalhar que quem dava aos padres emprestava a Deus”. Foi por meio da revista que começou sua paixão pelo Corinthians, quando escreveu uma matéria sobre a torcida.

Já nessa época ele obtivera o “alvará de soltura” de Roma. “Percebi que poderia viver o evangelho sem o limite da igreja. Como padre, eu tinha a sensação de que iria levar toda uma vida cuidando das velhinhas condenadas à salvação. As instituições não correspondem aos questionamentos do indivíduo. Nem a instituição Igreja nem a instituição casamento nem a instituição empresa. A única instituição que corresponde a tudo é o Corinthians”. 

(*) Ex-aluno do Estadual
(**) Amigo de Carlos e Sérgio, postou na rede social o texto acima.