30 de julho de 2023

Abra o livro!

Fotografia pelo autor

 

Eduardo Silveira de Menezes (*)

Projete sua sombra à luz da reflexão de outra pessoa; outros tempos, outras concepções sobre o mundo!

Abrir o livro é como abrir uma janela para que o sol possa penetrar na escuridão de onde vivemos.

Nem sempre a luz será agradável aos olhos. A mesma luz que ilumina também pode ferir a visão, pode queimar a pele. Mas, ainda assim, sua razão de ser é iluminar.

A luz não nega as trevas. Pelo contrário. A luz reconhece a escuridão e vive para ela, como uma mãe e uma filha.

Toda luz é vida. Mas ao "dar a luz" uma mãe dá ao seu filho a oportunidade de experimentar algo que nem ela tem a possibilidade de prever. Porque vida é prazer, mas, antes de tudo, é dor. Nascer desacomoda, nos faz chorar, nos vira de cabeça para baixo antes de dizer que estamos preparados. E leva tempo para que possamos dar os primeiros passos sozinhos.

A dor se manifesta já com o ato de iluminar a vida para que outra pessoa possa existir, do seu modo. Então, a mesma luminosidade que resgata da escuridão também "lança luz" na incerteza.

Ler é uma possibilidade de se defrontar com a incerteza da vida. Não só das nossas vidas. Mas de muitas outras vidas. É ter coragem de se "encontrar com a luz", ainda sem saber ao certo como ela irá se manifestar em nós.

Literatura é vida em movimento. É a indignação perante o obscurantismo da nossa falta de conhecimento e o antídoto contra a prepotência do "aprendizado dinâmico". É o reconhecimento de que somos ignorantes perante o que é, de fato, a vida; a que propósito ela serve, se é que serve a propósito algum.

Se não posso buscar o conhecimento na presença da sua fonte original de luz, posso, ao menos, acender uma tocha que ilumina meus passos na direção que eu escolho para ir adiante. Mas também posso parar e retroceder. Posso me demorar em um espaço que se iluminou, pela primeira vez, mas que antes era desconhecido porque não o havia iluminado.

Entre a luz e a escuridão eu posso o mesmo que entre a vida e a morte. Não calculei o início, não posso prever o fim. Mas posso manter o livro aberto, folhear suas páginas, preservar a vida que naquelas folhas se eterniza, à luz do conhecimento. E quem sabe, um dia, iluminar também.

____

(*) Doutor em Letras pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), com pesquisa aplicada às teorias do jornalismo. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com ênfase em Economia Política da Comunicação. Leitor compulsivo, hoje mantém o canal do YouTube Sujeito Literário.

28 de julho de 2023

Quando o Avô se tornou um Fusca

Aquarela da autora

 

Flávia Maria Schlee (*)

 

Pai, mãe e duas gurias em torno de quatro anos. Família pacata com uma casa que tinha um pátio e, nele, apenas um coqueiro. Seus frutos eram coquinhos cabeçudos, saborosos e fáceis de carregar. Eles despertavam apetites não só de comer, mas também de posse.

Um dia, apenas uma das gurias conseguiu apanhar uma quantidade bem grande de coquinhos cabeçudos. Dona Inveja apareceu, então, com um punhado de terra. Um punhado que nada teria de estranho se não tivesse sido jogado no rosto da pequena conquistadora.

            Até aí, o que teria sido apenas uma desavença comum à infância, mudou um destino. A pedra pousou dentro do ouvido da pequena que, de conquistadora, virou vítima! O Vô, que vivia sossegado em suas viagens de poltrona, foi convocado a prestar socorro e decidiu prontamente os procedimentos. O Ford 57 seria a peça chave da operação “pedra no ouvido” junto com muitos chicletes e um travesseiro. A menina, agora elevada ao centro das atenções, ouviu também que o pai ia guiar o auto pela estrada velha que ligava a pequena São Lourenço a grande Pelotas.  Até aí, nada parecia especial para a guria. A poeirada e os infinitos buracos ela já conhecia. Tudo bem com a poeira e os buracos, ela ia fazer a viagem olhando a vista.

Porém esse não era o socorro planejado. Ela e sua pedra no ouvido, deveriam fazer o percurso de auto (automóvel), pelos piores buracos. Quando soube que iria deitada no colo do seu vô, com seu travesseiro de penas e mascando chicletes desejou sinceramente que a pedra, tão bem alojada em seu ouvido, jamais quisesse sair de seu pouso. Nunca havia sentido tamanha segurança de um pai guiando e um vô cuidando!

Ainda que não possamos calcular o tempo preciso, em um determinado momento a guria teve que abandonar a plenitude de ser tão especialmente tratada e reconhecida. A pedra saiu em obediência aos trancos e barrancos do Ford 57 na velha estrada. Um cascalho se juntou a outros e o grande feito tomou seu tamanho diante da própria vida costumeira. Só a guria ficou com o sentimento da lembrança!

Assim, a menina vitimada pela inveja e salva pelo vô, confirmara o grande orgulho que sentia por ele e suas incríveis soluções. A vida continuava sem grandes malabarismos e sem a pedra que fora tão preciosa por tão pouco tempo, segundo os “espectadores sempre julgando de fora”. Eis que um belo dia, o Ford 57 foi trocado por um Fusca e, talvez por ironia, a tal troca aconteceu justo com a morte do Vô.

Diziam para ela que agora seu Vô se transformara em uma estrela. Mas, para ela, essa imagem de um avô como estrelinha no céu era uma bobagem! Como assim apenas uma estrelinha (?) martelava a menina. De tanto martelar um dia ela ouviu uma voz de pedra preciosa. Como um brilhante fragmento ela lhe segredou que com o Fusca não haveria jamais espaço suficiente para a grandeza de seu Vô e muito menos para ela se espichar no seu colo. Sim, era bem verdade! Então a menina teve que aceitar a troca e decifrou o enigma dos tamanhos e seus espaços. Talvez com o Ford 57 houvesse ainda uma obediência de tamanho em que cabiam avô e neta. Mas com o Fusca isso já não teria cabimento! Em um Fusca, meu vô não vai caber comigo!

Com espanto e dor, a menina compreendeu naquele momento que, de fato, agora ela deveria se preocupar muito e cada vez mais com tudo aquilo que vivesse de tamanhos. O que fazer, se ela ouvia seu vô pedir socorro para não ficar apenas como mais uma “pequena” estrela no céu (?). Foi assim que, por artifícios que seu vô havia lhe ensinado, transformou-o em um Fusca!  Em meu vô Fusca, murmurava a guria, qualquer tamanho poderia entrar, qualquer estrada seria a “nossa” e ele ainda saberia tudo que fosse “de ouvido”. Tal era a garantia de um Vô Fusca para mim. Ele sempre soube que meu coqueiro era um butiazeiro e com ele aprendi também a praguejar, com doçura, que meus ouvidos não eram ser pinico e que havia pedras que fechavam para sempre os ouvidos dos cabeças duras e invejosos e que água mole em pedra dura tanto bate até que fura e etc.

Porém, eu que só agora posso falar, não podia imaginar que um Fusca pudesse sair de linha, que o lugar de quem morre estaria na memória e que a imortalidade só pode se alojar em seres vivos que são capazes de olhar para o céu e se comunicar. Eu juro por todos os avôs e avós, se deste modo me permitirem, que os sonhos estão sempre em aberto.

Os Fuscas eram sim estrelas!

_____

(*) Flávia Maria Schlee nasceu em Pelotas, morou quando criança em São Lourenço do Sul, e reside atualmente no Rio de Janeiro. É graduada em História pela PUC/RJ, fez Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Doutorado em Letras pela PUC/RJ. É professora do Departamento de História da PUC/RJ. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, atuando nos temas de Literatura, Literatura Antiga e Medieval, História, ensino de História, Heródoto, Homero e Tucídedes.

23 de julho de 2023

A Nenhuma chamarás Aldebarã

 

Constelação de Touro


Rubem Braga

Eu vinha de não sei que tristes sonhos, nefastos pesadelos. Despertei, ansiado, no meio da noite, e olhando a escura parede senti que as imagens torvas que me povoavam os olhos ainda tontos ali vagamente se moviam. Voltei-me, então, sobre o meu flanco direito; a janela estava aberta para a noite. Era uma noite sem lua, que ciciava em árvores e murmurava em águas humildes; e uma grande estrela brilhava.

Haveria outras, esparsas e pequenas, mas aquela era tão grande e cintilava com uma estranha palpitação; era tão distante, mas brilhava tão perto e tão para mim como se fosse uma lanterna que mão amiga houvesse pendurado em minha janela para me dar alento no fundo da treva. Eu vagara tanto pelo mundo que, ao despertar, não sabia em que leito, casa, país e tempo; e mesmo tinha de recompor minha ideia para lembrar se era feliz ou infeliz. Apenas senti que estava agora voltado para o norte, e do fundo de meu coração saudei a estrela com a palavra que me veio aos lábios: Aldebarã!




Lera essa palavra em velhos, cansados livros que falam de astros e mistérios do céu; mas somente agora percebia que era uma palavra mística, feita de muitas outras, querendo dizer, em antigas secretas línguas: a Nova Esperança, a Alegria Amiga, o Esquecimento das Mágoas, a Alegria da Noite.

Aldebarã, Aldebarã! – disse eu, com estranho ardor; e foi como se a sua palpitação se fizesse mais fremente e pura. Então uma voz suave me disse, e era como se a minha melancólica mãe ou, ainda mais distante, a minha irmã e madrinha me passasse a mão pelos cabelos. “Descansa, dorme em paz, Aldebarã é tua amiga; e como soubeste dizer seu nome ela é para sempre tua amiga; dorme em paz, homem da noite solitária e cruel e dos fatigados, tristes pesadelos; dorme. E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a lago que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina”.

Eu disse apenas, humilde: “Prometo”. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino.