André Costantin (*)
Quando eu passo por um terreno de
terra crua, grama ou simples capim (desde que seja um interstício mais ou menos
plano no grave relevo da cidade), dois extremos atravessam o meu sentimento: a
infância livre jogada nas várzeas da Vila Kaiser e o adulto cansado que venho
arrastando desde a trágica epifania do 7x1, de Alemanha e Brasil, na copa de
2014.
Em campo, o desastre
prenunciatório deu-se justo quando as multidões passaram a vestir a camisa dita
“canarinho” como símbolo de um sonhado país sem corrupção e talvez mais justo.
Num lance muito rápido, a camisa amarela foi sequestrada por entes políticos e
outros vírus que habitavam os intestinos da nação e que enxergaram, naquele
estremecimento do grande corpo, a chance de vir à luz – pelas bocas e telas dos
smartphones.
Hoje, presos no labirinto das
nossas entranhas sociais, vemos com os olhos tontos daquele 7x1 sem fim os
pequenos exércitos de zumbis marchando em camisas amarelas da seleção
brasileira, em nome de nem sabem o que, de quem ou porquê. Bradam por um Brasil
livre, pela ditadura militar. Será demência? Tempo atrás pedi uma cerveja e me
ofereceram uma artesanal, de nome “7x1”, com rótulo e tudo. Sim, somos loucos e
sádicos.
Nossa arte do futebol suspirou
até lá pela copa de 1982. Tudo virou empresa, negócio. Os capins da cidade
estão vagos. No condomínio da minha filha há um campinho com goleiras e tela de
proteção, vazio – um sonho daqueles guris do Kaiser que jogavam num terreno
inclinado a 25% ou mais. Os garotos, homens feitos, foram lobotomizados pelos
games em quartos escuros, entre armas e tiros. E segue o jogo. Demos nisso.
Muitos já leram e definiram
traços da nossa complexa (ou extinta) brasilidade pela cultura do futebol.
Entre eles, dois mestres escritores e artistas cujos nomes agora se casam em
transparência de luz: Aldyr Schlee (1934-2018) – o revelador do Pampa, ao sul
da nossa identidade; e o recém-encantado Aldir Blanc (1946-2020) – intérprete
do Rio de Janeiro, coração do Brasil.
Criador da mística camisa
amarela, Aldyr Schlee sentia profunda tristeza pelo destino de sua obra mais
popular. Agora, vai-se Aldir Blanc. No seu vasto testamento, nos deixa o “Tá lá
o corpo estendido no chão; em vez de rosto a foto de um gol” – De frente pro
crime.
Aldyr, Aldir. Dois lutos que flecham os corações de “nós-outros” brasileiros – melancólicos são-sebastiões de osso e carne que somos, crivados pelos espíritos do futebol e do samba. E algo além. O mais da nação são gritos de ordem.
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(*) publicado no jornal O Pioneiro em maio de 2020
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