17 de junho de 2012

Ernesto Wayne - o Poeta de Bagé

Aplicação de cor sobre foto do Correio do Sul

15 anos sem o maior poeta de Bagé

Jucelaine Rodrigues Viegas

“Era o ideólogo e era o líder. Um artista não morre”, foram as palavras de Glauco Rodrigues, há exatamente 15 anos, quando Bagé perdeu seu filho ilustre.  Ele, Ernesto Calo Wayne, o mestre das letras, professor poeta e jornalista, era filho do escritor Pedro Rubens de Freitas Wayne e Leopoldina Calo Wayne. Nasceu em Bagé, a 14 de abril 1929 e faleceu na mesma cidade em 17 de junho de 1997. Casado com Vitória Gamboa Wayne teve sete filhos: Pedro, Valmir, Ramon, Cláudio, Dolores, James e Naira

Um homem apaixonado pela literatura desde a infância por influência do pai que guardou seu primeiro rabisco em livro quando contava tão somente 11 meses e 28 dias. Rabisco este que era considerado por Ernesto como o melhor texto que escreveu em toda sua vida. O Poeta, professor, e jornalista, homem do povo que sabia tão bem inventar palavras novas, que davam uma simbologia perfeita aos sonetos que escreveu.

Em seu soneto “Ramos de Ramon” Ernesto descreve com singular maestria a saga da família Ramon da Espanha ao Brasil. De charqueadores a escritores, a família Ramon soube tão bem dissecar a carne do gado quanto a alma humana. Basta analisar este pequeno trecho do soneto para perceber o lirismo presente nos versos:

Findam os Ramóns rurais,
Começam Ramóns urbanos
Termina o tempo do charque,
Charque de reses e tropas.
Não mais ressecam a carne
Do gado, Ramóns dissecam
As almas da carne humana,
Que o charque é de almas agora,
Carne e alma que conservam
Na branca cal do papel,
No sal fino que recobre
A lisa pele da página.

Especialista em Língua Portuguesa, Ernesto atuou por vários anos na Urcamp (Universidade da Região da Campanha) e na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Em Bagé também lecionou no Colégio Auxiliadora.  Lembrado com carinho pelos alunos que afirmam em um blog na internet que ele nunca reprovou ninguém, e que era um incentivador da leitura.

Ernesto Wayne pode ser considerado um jovem prodígio visto que, com apenas 16 anos, fundou em sua própria casa, no ano de 1945, o “Grupo de Bagé”. Neste dia, o pai,  Pedro Wayne, estava em São Paulo por ocasião do 1º Congresso Brasileiro de Escritores. Ernesto assim descreveu a formação do Grupo de jovens cuja idade não passava de vinte anos na época: “O Grupo de Bagé formado por artistas plásticos e poetas. Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Clóvis Chagas, João Honorino e Júlio Meireles, todos pintores. A turma do Teatro e do conto: Ernesto Costa, Ramón Wayne e Vicente Braile; Jaci Maraschin, músico, tocava piano, hoje é pastor protestante; Wilson Santos, pianista, cronista e poeta; eu (Ernesto Wayne) que lidava com versos naquela época e que tinha um volume, obra prima intitulada “os Carnavais Póstumos” onde se podia encontrar coisas assim: “Céus abobadados reboam infinitos/ aviões abobadados já soam como risos/ e grávidas aves ávidas de gritos/ são vidas vazias graves como avisos/. (Centro Cultural Machado de Assis -1959).

Ernesto Wayne amava o jornalismo e o fazia com imensa dedicação. Era no jornal que o autor deixava aflorar com mais intensidade o lado humorístico. Em um artigo autobiográfico, publicado no jornal Correio do Sul, o autor diz: “Não nasci em berço de ouro - eu não! Nasci em berço bem mais rico. Nasci em berço de papel impresso em tomos enfileirados nos armários do humilde escritório de Pedro Wayne”. Segundo a poetisa Norma Vasconcellos ele era “delator das hipocrisias do cotidiano; mágico das metáforas, humorista irreverente, mas ao mesmo tempo um “Terno lírico”. Gilmar de Quadros o considerava “dono de uma bagagem de conhecimentos invejável e até mesmo um merecedor do Oscar”.

(Fonte: Correio do Sul em abril de 1996)

Obra: Ernesto Wayne, além de ser dono de um imenso acervo poético, escreveu diversos artigos científicos publicados em revistas e jornais. O autor também realizou ensaios sobre a obra de autores gaúchos, porém publicou em vida apenas cinco livros: “Ossos do Vento”, “Extrato de contas”, "Baile na Ponte em Noite de Chuva” e “Anjo Calavera” (queimado pelo autor na noite do lançamento). “Pedro Wayne”, ensaio sobre a vida do escritor PW publicado em Letras rio-grandenses. Dos artigos científicos, destacam-se entre eles “Momentos do Modernismo em Bagé" (1972). Seus livros impressos, além dos poucos exemplares que existem na Biblioteca Pública de Bagé e Biblioteca da Urcamp, só são possíveis de encontrar em sebos, visto que não foram mais editados. Do livro "Ossos do Vento”, destaco uma estrofe deste soneto que retrata a profundidade de análise de sua própria vida ao observar um retrato seu, pintado pelo artista plástico Glauco Rodrigues em 1949:

Glauco Rodrigues fez este retrato
Me vendo mais por dentro que por fora:
O quadro cada vez mais fica exato,
Quem não era antes, vou ficando agora
Rugas e lágrimas, eis que constato
Nesse rosto esfolado de quem chora,
Na cor acesa em brasa em que desato
Fogos do inferno pela face a fora.
O esvair-se em estrelas foi-se pelos
Mil caminhos grisalhos dos cabelos,
Restam rastros de prata na moldura,
Mas, o que mais estranho na pintura
É que me ponha a contemplá-la e sinta
Que nos meus olhos nunca seca a tinta.


A vida: Ernesto era homem simples que soube conviver com a dor e as carências materiais. Durante toda sua vida trocou várias vezes de residência, muitas por problemas financeiros, fato este que lhe impulsionou a escrever o poema: “As muitas moradias:

...E, se exagero um pouco e digo
Que a soma dessas casas todas
Totalizaria uma vila e
Se continuar ocupando mais
Casas, pronto se teria,
De certo, cidade cubista
Constituída, inteiramente,
Da sucessão das moradias
Em que vivi meus dias.

Sua irreverência e humor foram a magia que cativou alunos, professores e pessoas das mais distintas camadas sociais. Ao analisar sua atuação jornalística percebemos, através de seus escritos, que sua dedicação ao ensino o acompanhava em todos os momentos.

O poeta deixou muita saudade entre companheiros de magistério e principalmente entre poetas do Cultura Sul. Suas amigas mais próximas, Norma Vasconcellos e Elvira Nascimento, relembram com pesar a ausência daquele que era o primeiro a comparecer em todas às reuniões com um maço de papel embaixo do braço. Papeis estes, repletos de belíssimos sonetos e poesias, que até hoje são guardados com carinho pelas amigas que anseiam vê-los um dia transformados em livro póstumo.

Nesta foto podemos ver a grande quantidade de polígrafos datilografados com sonetos e poemas de EW, que encontram-se em posse de uma amiga, também escritora e membro do Cultura Sul (*).


 
(*) Entidade autônoma, reunindo forças culturais da comunidade para estímulo a todas as manifestações artísticas.
 
Desta série de sonetos, alguns nos chamam a atenção pelo título que ostentam. “Poeta Na Cadeia” conta sua própria história na cadeia por três meses, por ocasião do golpe militar em 1964, e "O último Trem de Bagé", fala sobre a última viagem do trem que partiu de sua cidade.

Quando realizei o Trabalho de Conclusão de Curso, na Unipampa, sobre a Constituição de Acervo Literário de Ernesto Wayne, fiz um apelo veemente às professoras que participaram da minha banca para que o Curso de Letras da Universidade se encarregasse de tornar o autor conhecido no meio acadêmico e que sua obra fosse divulgada e reconhecida como Patrimônio Histórico de Bagé. Se isso acontecer será a concretização de um sonho que permeia a mente dos companheiros e admiradores de Ernesto Wayne. Afinal, ninguém mais do que ele soube descrever tão bem as ruas, as praças e a gente da nossa terra. Sua obra está permeada da vida na sociedade bageense em sua época. O soneto “Bares de Bagé” revive sua trajetória como homem do povo acostumado à boemia. O soneto descreve os mais variados tipo de bares da cidade, todos do seu conhecimento. Em todas as décadas, o mais frequentados, os mais simples e os mais luxuosos. O poeta vai descrevendo o que acontece em cada um deles, citando nomes de personagens literários mesclados com figuras do seu cotidiano.Vejamos alguns trechos:

Era uma vez os bares de Bagé,
Em que tanto bebi, para fazer de conta
Não ser facada nem ferida a vida,
Se vista for de dentro da alma tonta
No corpo bambo com cabeça zonza.
Meu espírito aos tombos e trancos, tropeços
Espalhados ao longo dos meus passos
Junto a meus pares pelos bares de Bagé...

Era uma vez os bares de Bagé
De que se seguirá prestando conta
Cabaret do Alfaia
Por entre garçons
De gravata e borboleta
E compridos aventais.
O tempo passado
De frack e polaina
Tomando pileque
Com uma cocote
Que é tempo de orgia...

Ele perambulou por todos, ou quase todos, bares e cafés da cidade, conviveu com gente como ele. Poetas, professores, jornalistas, artistas plásticos... enfim, trabalhadores de diversos ofícios. Ele se foi, mas como disse a poetisa Elvira Nascimento, "ficou seu jeito teimosamente bageense de não sair das casas e fazer de Bagé a sua Macondo e lugar de imaginação". (Correio do Sul, 21 junho de 1997).

Como admiradora deste que é considerado o “Poeta Maior de Bagé”, foi que decidi não deixar passar em branco esta data de seu falecimento, por isto dediquei um pouco do meu tempo para relembrar a contribuição de EW para a literatura bageense e nacional.

Concluo, transcrevendo um de seus sonetos, para que aqueles que não leram sua obra possam conferir a beleza e a tessitura de suas metáforas. Para os bageenses que o conheceram - e conhecem sua obra - deixo as palavras do professor Alcyr Britto, genro do poeta, na ocasião do seu falecimento em 97: “Wayne será para Bagé o prólogo, não o epílogo”. Mas para isto é preciso concordar com Elvira Nascimento, que disse que "devemos falar sempre de Ernesto Wayne até que se partam as pedras do esquecimento e seu  delírio poético jorre sobre a Bagé que ele tanto amou".

Soneto Diante Da Cidade

Do alto do Cerro, o precipício ao lado,
Vista de cima, à noite, se desata
Desta cidade a imagem mais exata:
Muito a cidade temos contemplado.

Um lenço branco como que a retrata,
Lenço em que a luz após haver chorado,
Sobre a treva atirasse, marejado
Da luz de sua pálpebra de prata.

Há sereno de cinzas e saudade
(O orvalho é como o pranto das estrelas)
E desliza, dos olhos, a cidade.

Como se nossas lágrimas rolassem
Encosta abaixo e, sem poder contê-las,
Luzes azuis nas ruas se tornassem.
______________________________________

Jucelaine Rodrigues Viegas (*)

(*) Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pampa, passou a estudar a obra do escritor Ernesto Wayne dentro do projeto "Vozes ao Pampa", liderado pela professora Dra. Vera Lúcia Medeiros. Seu Trabalho de Conclusão de Curso teve como título: “Procedimentos iniciais para constituição do acervo literário de Ernesto Wayne”.
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5 comentários:

Vera Luiza SVaz - maudepoesia.blogspot.com disse...

Profundamente emocionada pelo texto, pelas lembranças, desejo agradecer à autora de memórias tão gratas, tão queridas.
Ao Vaz, pela escolha da brilhante postagem.
Fui aluna de Ernesto Wayne, entre os anos de 71 e 72. Na época, chamava-se Funba (Fundação Universidade de Bagé.
Ao olhar a fotografia aqui postada junto ao texto, revejo a mesma fisionomia que chegava à sala de aula sempre de bom humor, modestamente vestido, com alguma observação pra além, muito além do esperado...
Novidades, críticas que nos faziam enxergar as obras, as publicações pelo avesso... e era por demais interessante começar a ter esse olhar...
Teoria da Literatura me fez amar mais ainda a arte literária por seu conteúdo moderno, curioso, pleno de vida e de significado, trazido masgistralmente até a cátedra pelo maior poeta bageense!
Esse privilégio me fez lamentar quando, no ano seguinte, 1973, precisei transferir-me para a UCPel.
Em Bagé, o curso de Letras, à época, tinha sabor de vida, de descobertas diárias, tinha gosto de liberdade...
Recordo muito do conteúdo das aulas do mestre querido, porém o que realmente ficou foi a instigação, o desafio, o não acomodar-se, o insurgir-se que ficava concreto na postura singular e verdadeira!
Por modéstia, talvez,não nos falava de sua arte poética,todavia nos mostrava a arte da vida...
LINDA POSTAGEM! PARABÉNS!

Anônimo disse...

Pois, Vera e Vaz...
Belíssimo o texto de Jucelaine Rodrigues Viegas! Nele, não apenas o transbordar das letras da autora - no conhecimento do tema em que ela também é protagonista - mas, nesse transbordar, a profundidade de seus sentimentos tecidos de carinho e admiração pelo poeta Ernesto Wayne. Também fica evidente a "vontade idealística" da autora de que o Poeta receba a atenção e o destaque que sempre fez por merecer - não só enquanto poeta, mas igualmente enquanto professor, jornalista e homem-comum. Fica mui claro o chamamento, mesmo o apelo, nesse sentido de que os versos pintados de beleza, vivência e profundidade venham a público. É preciso reencontrar o poeta. É preciso redescobrir Ernesto Wayne. É preciso declamar seus versos e suas rimas. Enfim - e com justiça -estudar sua Obra e honrar ao Homem e ao Artista que foi, fazendo-o, de novo, vivo - Imortal! Entendo que a autora nos conclama, (de forma sincera e apaixonada!), a um arregaçar de mangas em nome do Poeta, da Poesia, da Arte, da Cultura Bageense e Rio-Grandense. Entendo a autora e louvo sua determinação e seu Idealismo! À bela e pública manifestação de Jucelaine Rodrigues Viegas eu chamaria "Cruzada por um Poeta e sua Poesia!" Ah, essa "Cruzada" não poderia ser de todos nós bageenses, ou, pelo menos, de um grupo ligado à Cultura e às Universidades que fazem nossa "Rainha da Fronteira" mais bela, sábia e culta??
Encerro o modesto comentário com este terno testemunho da poetisamiga e conterrânea Vera Luiza, quando diz: "Em Bagé, o curso de Letras, à época, tinha sabor de vida, de descobertas diárias, tinha gosto de liberdade..." Nesse testemunho, há Poesia, há Vida, há Valores, há Memória com cheiro de Gratidão!!
PARABÉNS, à autora Jucelaine, pela beleza e realidade do texto!
Ao Vaz, pela divulgação no nosso dinâmico e prestimoso "Velha Guarda"!
À Vera Luiza, pela riqueza interior do seu comentário!
A todos, meu abraço franciscano!
JJotaPoet@!

Anônimo disse...

Prezados webnianos/Numa reportagem sobre os artistas plásticos de Bagé asseverei que o tamanho das cidades não era mensurado somente pelo número de habitantes mas principalmente pelo número de celebridades.Naquela ocasião deixei de mencionar que a mídia acolhia ou abatia as criações humanas como se tivessem poderes plenipotenciários para isso.Felizmente cada Ernesto que for mais um Ernesto virá.Alcir Brito

jurvi disse...

Estou imensamente emocionada por tão afáveis palavras de incentivo e reconhecimento da Luiza e do professor Jotta com relação ao meu texto. Sou imensamente grata pelos elogios tecidos e quero que saibam que a ideia de escrever algo mais profundo sobre o Ernesto é um anseio meu desde o início de 2011 quando decidi que Ele seria o tema do meu TCC. Quis o destino que tomasse conhecimento deste blog bem no início de 2011 o que considero uma valiosa conquista, visto ser este um canal que une informação sobre a cultura, a arte e a literatura, mas principalmente um tema que considero de extrema necessidade, que é o resgate da memória soial. Agradeço imensamente ao Vaz por ter sua presteza em oferecer-me este espaço para escrever sobre o Ernesto. Vejo nele um profissional que embora seja ocupadíssimo, dedica tempo para resgatar e preservar a memória social de sua terra natal. Enfim, agradeço também à Sônia Alcalde e `a professora Miriam Kelm pelo incentivo que recebi delas por email . É muito gratificante todo este processo e nos encoraja a seguir em frente em busca dos objetivos almejados.

Luiz Carlos Vaz disse...

Jucelaine, o Blog é quem agradece. Esse trabalho é coletivo, e cada um que vai chegando, e vai colocando mais um tijolo nessa casa, ajuda a reconstruir uma história que já estava meio esquecida ou apagada. A trajetória dos "Waynes" em Bagé é grande e ainda tem muito a ser contado.
Recomendo aos interessados a leitura de outra postagem -O pai da Teté- sobre o patriarca Pedro Wayne, de autoria da Dra Cristina Rosa: http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com.br/2010/03/o-pai-da-tete.html