28 de agosto de 2014

O suicida de pijama

O ator Tony Ramos interpretando Getúlio

O suicida de pijama 

L F Veríssimo

Nada representa as contradições de Getúlio, ou a sua esperteza política, melhor do que o que se dizia dele durante seu apogeu, que era o pai dos pobres e a mãe dos ricos

Até os 4 ou 5 anos de idade eu fazia xixi na cama. Eu sei que você poderia muito bem viver sem esta informação, mas eu queria contar a lembrança mais remota que tenho da minha infância. Eu no banheiro, antes de dormir, com meu pai ao meu lado tentando me inspirar a fazer xixi na privada para não fazer depois, na cama.

— Vamos, meu filho.
Eu nada.
— Pelo Brasil!
Nada.
— Pelo doutor Getúlio, meu filho!
Mas o xixi não saía, nem pela pátria nem pelo presidente. 

O Getúlio Vargas não tinha nenhum poder sobre a minha diurese, mas mandava em todo o resto, no país. Estávamos em pleno Estado Novo. Um pouco depois meu pai aceitou um convite para lecionar literatura brasileira na Universidade da Califórnia durante dois anos, em parte para fugir da ditadura de Vargas e seu Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. Nossa volta dos Estados Unidos em 45 coincidiu com o fim do Estado Novo e a queda de Vargas — que, cinco anos depois, voltaria à Presidência, eleito. 

A volta de Vargas em 1951 foi um caso raro de ditador que retoma legalmente o poder, de certa forma legitimando retroativamente o seu governo de exceção. Mas o Getúlio foi um caso raro em todos os sentidos. Surpreendia que tantas contradições coubessem numa figura tão pequena. Foi um produto da oligarquia rural responsável pela legislação social mais avançada da sua época e líder de um estado filofascista na origem que se aliou rapidamente à guerra ao fascismo. Nada representa suas contradições, ou a sua esperteza política, melhor do que o que se dizia dele durante seu apogeu, que era o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Também podia agradar à esquerda e à direita ao mesmo tempo. A campanha para a sua volta do exílio foi feita em cima de uma marchinha nostálgica que pedia para botarem o retrato do baixinho na parede outra vez. O fim do Estado Novo tinha deixado um branco insuportável nas paredes da nação. Um nicho sem ídolo. 

Sempre me intrigou o fato de o Getúlio ter vestido um pijama para se matar. Não era exatamente um traje adequado para deixar a vida e entrar na História tão dramaticamente. Talvez fosse apenas outra contradição: um símbolo de cálida domesticidade e velhos hábitos prestes a ser furado por uma bala no coração. 

Vá entender.
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Publicado no site de O Globo
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