24 de julho de 2012

Um baú no Pampa – XVII, "Una teiera di latte"


Tia Ernesta e o marido em foto de uma viagem a Petrópolis


O Bule de prata, guardado como relíquia, era usado em navios como esse

Una teiera di latte
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Gerson luís Barreto de Oliveira


   Quando o bisavô Guasque faleceu, em 1937, o rumo da família em Bagé ficou oscilante. Era um grande clã, onde a maioria era de mulheres e, as que não estavam casadas, acharam que deveriam ir para a Capital Federal, o Rio de Janeiro. A Cidade Maravilhosa era um grande imã que chamava por oportunidades que elas não teriam na nossa pacata Bagé da década de 30.

   As filhas casadas compraram os móveis remanescentes, e a casa foi vendida, pois tinham que fazer dinheiro para enfrentar a viagem e se estabelecer na cidade grande. A viagem já era uma epopeia, estradas não existiam, avião era elitista, e não havia linhas regulares. O mais fácil era pegar um vapor em Rio Grande.

   Uma das minhas tias, Ernesta, entrou em desespero pois tinha uma cadelinha poodle e não imaginava  deixar a mascote em Bagé. Sua querida cachorrinha, a quem ela tratava como uma lady e que era acostumada a dormir em uma cesta de vime, onde as cobertas eram habitualmente trocadas, corria o risco de virar uma cadela de rua, pois uma das opções era ficar em mãos das irmãs, que moravam no campo.

   Tia Ernesta era uma mulher prática, e era difícil se dobrar às evidências de que não poderia levar a cachorrinha na viagem de vapor, pois, pelas normas de higiene vigentes não eram admitidos animais nos barcos de passageiros e, caso fossem achados, eram jogados automaticamente ao mar.

   Ela colocou a bichinha dentro da bolsa, comprou a passagem e embarcou. Lá dentro veria o que poderia fazer. Mas logo as coisas começaram a dar errado. Os alimentos que levara para o animal acabaram durante a travessia até o porto do Rio de Janeiro e tia Ernesta saiu atrás de leite, porque se a cadela sentisse fome, começaria a latir, e tudo estaria perdido...

   O camareiro foi chamado e, alarmado, quase estragou tudo! Mas houve muitos pedidos pela vida do animalzinho, uma boa gorjeta e, embora ele estivesse correndo o risco de ser demitido, cedeu às suplicas da tia.

   Todos os dias vinha para o camarote um bule extra, com leite, para a ocupante clandestina que se comportava bem que era uma maravilha e não chamava a atenção de ninguém. O camareiro alertou que na cozinha já estavam ficando desconfiados, e um dia trouxe o leite extra pela última vez. E disse mais, que tia Ernesta jogasse o bule pela escotilha após alimentar a cadelinha.

   A viagem finalmente chegou ao seu destino. Tia Ernesta desembarcou muito feliz no deslumbrante Rio de Janeiro do final da década de 30...

   Mas e o bule... que,  para completar o quadro, era de prata de lei ?

   Na fina peça alguns dizeres traduzidos como, "Companhia Maritima Italiana", atestavam que essa empresa deveria ser a dona da concessão dos vapores na época. Então Tia Ernesta resolveu arriscar mais um pouco e enfiou o tal bule dentro da sua bolsa...

   Tempos depois mandou a “lembrancinha do Vapor” de presente para minha avó,  juntando a ela o relato da aventura.

   Quanto à cadelinha poodle, posso dizer que usufruiu junto com minha tia do esplendor do Rio de Janeiro dos anos 30. Ela morreu de velha muito tempo depois de aportar na Cidade Maravilhosa. Viajou direto de Bagé -via Rio Grande- como clandestina num Vapor italiano, e foi "fazer sua vida canina" na velha Capital Federal.
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Gerson Luís Barreto de Oliveira
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6 comentários:

Anônimo disse...

Pois, Vaz...

Maravilha de texto este do Gerson Luís! Não só pela espontaneidade da narrativa, mas porque, nela, há - do início ao fim - aquele confesso sentimentalismo que só o coração sensível sabe expressar... Devo dizer que a "tia Ernesta" do Gerson me encantou com sua prova de Amor Incondicional por sua cusquinha, de quem nunca admitiu se separar. Essa bondosa tia me fez lembrar das tias queridas que tive, em Bagé, que muito bem cuidavam de seus bichos-de-estimação. Afinal, dos amigos a gente cuida - não é mesmo? (Em tempo: será que ainda se fazem tias como antigamente??)
Meus parabéns ao Gerson Luís por essa "leveza" com que narra e descreve fatos de uma aventura real com cenas que nos parecem de cinema, pois, durante a leitura, eu ficava imaginando as situações extremamente difíceis e as atitudes criativas e arrojadas da "tia Ernesta". Enfim, venceu o mais forte: o Amor! Com certeza, me fez muito bem (à Alma!) a leitura desta crônica intimista, nesta silenciosa e mansa manhã de inverno - com uma chuvinha calma e gostosa... que nos convida ao suspiro reminiscente e à contemplação da Vida!
Abraço franciscano aos dois!
JJ!

Gerson disse...

Tchê Vaz, o Xará voltou com seu contos impressionante. Conta mais vivente. Um baita abraço!

Glecio Rodrigues disse...

Parabéns pelo blog e pelas belíssimas crônicas. Saudações.

Anônimo disse...

Vaz

Que bom que o JJ, e o meu xará gostaram. Revelo agora o nome da mascote, que eu desconhecia, tia Ernesta a chamava de Zita.
Abração
Gerson

Luiz Carlos Vaz disse...

Obrigado, Glécio, continue nos visitando...

Anônimo disse...

Obrigado por registrar esse episódio emblemático das nossas Guasque guerreiras, que enfrentavam as dificuldades criando novos desafios.

Renato Guasque