9 de junho de 2013

Eu me recordo

Artigo que escrevi a pedido do Joanes Araujo para a primeira edição do Nosso Jornal, o jornal da Hulha Negra, que teve seu primeiro número circulando no dia 25 de março de 2013, em comemoração ao aniversário de 21 anos de emancipação política da nossa Terra Mãe.

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Eu me recordo
Luiz Carlos Vaz (*)




A Vida não é a que a gente viveu,
e sim a que a gente recorda,
e como recorda para contá-la.

 G.G.Marques
(Viver para contar)


Eu não me lembro de nada da Hulha Negra. Mas eu me recordo de tudo da Hulha Negra. Recordo desde o dia em que trocaram o nome da localidade do Rio Negro, pois lá estavam as minas de carvão, as negras hulhas minerais que mudariam não só o nome mas a história do lugar.

Lembro dos vagões do trem, que chegavam cheios de mineiros, que cheios também de esperança, sonhavam ganhar uns bons cobres na árdua tarefa de cavar as entranhas da nossa terra. Recordo que um tempo depois, um outro vagão que chegou, cheio de moças, que cheias de amor incondicional, fizeram surgir a famosa Marambaia, lugar onde os mineiros deixavam uma boa parte da riqueza adquirida nas profundezas secretas e úmidas do nosso chão.

Como se fosse hoje, eu me recordo da professora Albertina Medeiros levando meu irmão de carona até o Colégio da Usina, na aranha, conduzida elegantemente por ela. Recordo daquele bando de crianças alegres, com seus tapa-pós  brancos, aprendendo que Ivo havia visto a uva...

Recordo do Cartório do Bruno Petry, que funcionava em uma peça da nossa casa, o cartório onde eu, meu irmão e minhas irmãs fomos registrados como cidadãos nascidos na Hulha Negra. Um dia meu pai abriu a porta e disse para ele: “Registra aí, Bruno, nasceu o Luiz Carlos”, e logo dois ou três amigos que estavam no balcão do armazém Casa Nova assinaram como testemunhas daquela naturalidade hulhanegrense, um verdadeiro privilégio de poucas pessoas que vieram a este mundo...

Eu me recordo de tudo isso e não me lembro de nada da Hulha Negra. Não vi nossa vaca Chiquita ser estraçalhada pelo trem, mas me recordo perfeitamente do ringido das rodas metálicas tentando parar a locomotiva, do barulho do choque, da notícia correndo de casa em casa, e dos restos do animal pintando de vermelho os trilhos por dezenas de metros afora. Recordo muito bem que naquele dia o grupo 25 foi condenado, pois se desse na cabeça, poderia quebrar a banca que ficava na venda do seu Jadir. Lá eu vi, a roleta vermelha, montada numa roda de bicicleta, que girava todas as tardes e apontava, com testemunha de homens probos da vila, qual o bicho que saíra.

Eu recordo do crescimento e da decadência das minas e do comércio. Das pessoas conhecidas, e de muitas pessoas estranhas, de longe, que falavam a nossa língua com um acento esquisito. Recordo dos namoros proibidos e dos casamentos consentidos. Recordo de muitos nascimentos e também de muitas mortes. Dos animais de estimação, das árvores frondosas, dos frutos e dos sabores antigos. Dos primeiros retratos em preto e branco, dos primeiros sapatos de verniz, da primeira comunhão e do primeiro e único amor. Recordo da guerra, das notícias do front trazidas pelas ondas curtas da rádio Mayrink Veiga, das marchinhas de carnaval e das misses na revista O cruzeiro.

Eu não me lembro de nada da Hulha Negra, mas vivi todas essas coisas. Vivi todas essas coisas pelos olhos da minha Mãe. A memória dela é a minha memória. Tudo o que ela viu ela me contou. Todos os fatos, todas as histórias – verdadeiras ou não – que compõem a minha memória sobre a Hulha pertencem a ela.


Por isso é que eu recordo, com clareza, do dia em que o meu pai chegou já tarde da noite em casa depois de uma passada pela Marambaia, e ouviu de minha mãe, que ajeitava uns pelegos no chão da venda, a frase curta e seca:

“Hoje tu dormes aqui!”.
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(*) Luiz Carlos Vaz
Jornalista, Especialista em História da Arte, Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural; pesquisa fotografia, memória social e arquivos fotográficos; edita um blog de memórias sobre o antigo Colégio Estadual de Bagé, hoje Carlos Kluwe. Nasceu na Hulha Negra em 21 de dezembro de 1951.

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Fotografia que ilustra o artigo Eu me recordo
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8 comentários:

Elô disse...

Sou a primogênita de um dos caras da foto: o pé-no-chão Paulino Vaz e escutei muitas histórias parecidas envolvendo as mesmas pessoas e os lugares que citaste. Saudades tenho desse tempo que nem vivi, mas ouvi. Minha parte saudosista agradece.
Eloísa Vaz

Luiz Carlos Vaz disse...

Obrigado, prima "Elo", por se juntar a essa memória, que não é exatamente nossa, mas de nossos pais, mas, dessa forma, também nossa.

Vera Luiza SVaz - maudepoesia.blogspot.com disse...

Arte de viver, arte de recordar, arte de contar fundem-se neste belo texto pleno de vida...

Minha memória da Hulha Negra é bastante ampla. Lá vivi os cinco primeiros, lindos anos de minha existência!

Atenta a tudo, vivi, guardei, guardo a memória de eventos infantis significativos na minha trajetória que, aliados aos anos seguintes vividos em Bagé, me fizeram do jeito, assim com sopro de minuano, que se fundamentou em minha alma...

Parabéns, mano Luiz Carlos,pela aprazível leitura!

Abraço!

Luiz Carlos Vaz disse...

Pois é, Vera, como eu disse, minha memória sobre esse tempo é a memória da nossa mãe e, um pouco, é clao, da memória dos outros irmãos que tiveram o privilégio de quedar-se por lá mais tempo do que eu.
Um abraço forte.

Anônimo disse...

Pois, Vaz...

Na manhã desta segunda-feira, nublada, de garoa mais do que chuva e cheirando a inverno, tiro a Alma um pouco da hibernação involuntária e venho aqui cumprimentar-te por essa bela e reminiscente narrativa que mexeu com meus próprios sentimentos e sacudiu, com as mãos do Tempo, minhas lembranças... Belíssimo texto que li, quando o postaste no VG. E, num outro momento, o reli, "viajando", (degustando, seria mais correto dizer), os fatos contados, aqui, de forma tão clara e com detalhes enriquecedores que nos remetem aos cenários, aos dramas, enfim, mesmo aos cheiros e coloridos da época em foco. As fotos registram origens, sementes de nossos próprios passos - não é verdade? Digo nossos, porque, lendo tua narrativa, também dei-me conta das historinhas que carrego na mochila da minha vida... Então, Vaz, com a sinceridade e a humildade que também carrego, dentro de mim, não somente agradeço pela oportunidade de ter lido este texto, mas, igualmente, pela alegria de saber que o escreveste, (e tão bem!), pela cumplicidade lúcida e realista da memória de Dona Loira -tua mãe. E isso, Vaz, a mim me soa maravilhoso! Além do que, com umas "pitadinhas" de "recuerdos" dos irmãos - não é mesmo? Ah, a essa (re)união carnal e espiritual para o (re)nascimento dessas memórias belas e também pungentes, eu chamo de FELICIDADE!!
Era mais ou menos isso, Vaz... Como costumo dizer ao final de "e-mails" que envio e que respondo...

Com meu abraço franciscano para o conterrâneo e amigo Vaz e para sua Família!
JJ!

Luiz Carlos Vaz disse...

Gracias, JJ Poeta.
Teu comentário-poesia enche de luz e sol esta manhã de segunda-feira-cinzenta, "fundo" perfeito, segundo Leonardo, para pintar memórias que remontam um passado distante que parece pertencer, sim, a todos nós.
Um abraço terrunho,
Vaz

Anônimo disse...

Poxa, Vaz...

Tuas palavras me alegram a Alma e me contentam o coração... Leonardo bem que tem razão... Creio que o poncho cinzento das nuvens nos convidem a "cavalgadas" pretéritas e suspirosas sobre nós mesmos... Então, paramos o Tempo e damos rédeas às Memórias!!

Abraço franciscano!
JJ!

Luiz Carlos Vaz disse...

"... o poncho cinzento das nuvens nos convidem a "cavalgadas" pretéritas ..."
JJ é pura poesia!