31 de janeiro de 2014

Pequena crônica sentimentaloide

A sala de estar

Pequena crônica sentimentaloide

Nikão Duarte

De uma caixa de pasta de dente, ele fazia um caminhãozinho; de outra, um conjunto de sofá, duas poltronas, uma pequena mesa de centro – eventualmente substituídas/complementadas pelos móveis de uma sala de jantar.

É com essa remota imagem que o guri de antigamente lembra seu pai, do curto espaço de tempo em que conviveram. Um brinquedo para a filha mais velha, outro para o único filho. Na sua visão de pai dos anos iniciais da segunda metade do Século XX, os cuidados com as duas outras filhas, pequenas demais, eram responsabilidade única da mãe dos quatro.

O caminhãozinho de papelão, saído da sua habilidade artesanal, precisava de complementos igualmente improvisados: havia que dotar-lhe de rodas, e estas saíam da parte sobrante da caixa que ele cortava para evidenciar a cabine e a carroceria. Como eram coladas, impunham ao veículo uma contraditória imobilidade, e ao filho uma contida frustração.

O sofá, as poltronas, as mesas e as cadeiras da irmã cumpriam uma função específica: abrigar as figuras humanas que ela recortava de revistas e, às vezes, cobria com roupas extraídas de outras imagens.

Na totalidade da infância de há tanto tempo, os dois irmãos não ansiavam por brinquedos melhores. E eles existiam, fruto das visitas de avós, padrinhos, tios e amigos. Mas não rivalizavam com a intimidade de ver o patriarca produzir e regalá-los com suas obras. Era o afeto possível, na educação convencional dos anos 1950, 1960, sem espaços para salamaleques, mas, no caso do guri, complementado por uma convivência mais próxima, pela possibilidade de acompanhá-lo em situações tipicamente masculinas, como as caçadas de tatu nos campos do Arroio Grande e nos altos e baixos da Serra do Passarinho e da Serra dos Velleda.

O pai, a filha

Duraram menos de uma década essa proximidade e esse afeto de pai para os filhos. Nas circunstâncias da vida, um lar desfeito representou o completo afastamento e algumas imposições eternas: entender os porquês de tamanha ruptura, tentar subvertê-la superando orgulhos em busca de uma proximidade (im)possível e assumir, desde infante, o lugar do ausente – pela simples condição de único varão no/do que sobrou da família.


No que sobrou da família, o caminhãozinho ficou em segundo plano. Subjugou-o a necessidade contínua de dotar a irmã mais velha e as mais moças da mobília com que alimentaram seus sonhos de gurias. Caixas e caixas de embalagens de pasta dental continuaram sendo transformadas em sofás, poltronas, mesas e cadeiras para famílias completas que permaneceram no imaginário delas por muitos anos, ainda. Ainda que por obra de um artesão menos talentoso.
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Nikão Duarte é porto-alegrense de nascimento mas cacimbinhense(*) de origem e coração. Jornalista (ComEfeito Comunicação Estratégica), professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos - e pesquisador.

(*) Gentílico dos nascidos em Cacimbinhas, nome original do município gaúcho de Pinheiro Machado.
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