4 de dezembro de 2015

Uma lata de Manteiga Aviação

Foto L C Vaz

Uma lata de Manteiga Aviação

Aí eu abro uma latinha de Manteiga Aviação e encontro um velho cartão da Caixa, um ingresso para a Bienal do Livro de 1990, uma cédula de 1.000 sucres, um moeda de dólar, um band-aid cor da pele, um vale transporte de Caxias do Sul, um calendário metálico de colocar na pulseira do relógio do mês de março de 1972, dois tíquetes da balsa da F. Andreis RG x SJN, um pin da Fenadoce, um pin de um coral alemão de 1974, um pin da UFPel, uma miniatura da Coca-Cola, uma tampinha de Fanta, selos espanhóis de 1996 recortados de uma velha carta num total 290 pesetas... e me pergunto, porque eu guardo isso há tanto tempo?

6 de novembro de 2015

Português normal, vovó!

Montagem sobre foto publicada no Facebook de Marcel Gonçalves Pereira

Português normal, vovó!

Por Marcos Bagno (*)

Tenho um amigo uruguaio que veio com a família para o Brasil ainda criança. Foram morar em Santos. Como todas as crianças, ele e os irmãos logo aprenderam português no convívio com os vizinhos e colegas de escola da mesma idade.

O pai, querendo aprimorar o conhecimento dos filhos, contratou uma professora particular para ensinar português a eles. Poucas aulas depois, Álvaro chegou para o pai e disse: “Pai, das duas uma: ou o que essa professora ensina não é português, ou o que meus amigos falam não é português. O que ela ensina não tem nada a ver com a língua que a gente aprende com nossos amigos”.

Outro amigo, português agora, morando no Brasil há algum tempo e já bem familiarizado com a nossa língua, decidiu se matricular num cursinho para fazer vestibular.

Poucas aulas depois, Rui comentou comigo: “Não admira que os brasileiros digam que português é uma língua difícil: o que se ensina nas escolas é português de Portugal, nada a ver com o que realmente se fala aqui. Para mim é muito fácil, mas para os brasileiros é mesmo um suplício!”

Mais recentemente, uma queridíssima amiga paraibana me contou a seguinte história. Seu neto de quatro anos de idade quis ver um DVD com o desenho animado do Pinóquio, um dos clássicos da Disney.

Como o DVD tinha sido comprado na Europa, só trazia dublagem em português europeu. Tão pronto o filme começou, o pequeno Gabriel gritou: “Não quero em francês! Não quero em francês!”, porque sabia que a avó e o pai tinham vivido muito tempo na França.

Rosalina então explicou: “Não é francês, Gabriel, é português de Portugal”. Ao que Gabriel retrucou: “Não quero Portugal! Quero português normal, vovó!”

Todo esse nariz-de-cera é só para anunciar a minha Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. É a primeiríssima obra do gênero que se dedica exclusivamente aos modos de falar e de escrever que caracterizam a nossa língua materna, o português brasileiro, falado por quase duzentos milhões de pessoas.

É a primeira que descreve e autoriza aquilo que já está autorizado há século e meio, senão mais, pela nossa melhor literatura, de José de Alencar a Luiz Ruffato, passando por Machado de Assis e toda a longa fila de grandes autores da nossa língua.

É a primeira que repele sem susto os equívocos da tradição gramatical, cheia de erros teóricos e prescrições absurdas, e se apoia numa teoria linguística coerente e nos resultados obtidos em mais de cinquenta anos de pesquisa científica séria realizada em nossas melhores universidades.

É chato ter de fazer propaganda da própria obra, mas como são poucos os espaços disponíveis para trabalhos dessa natureza, mando a modéstia às favas e deixo aqui esse recado.

Adeus, bobajada autoritária do normativismo empedernido e de seus fanáticos seguidores que têm invadido a mídia brasileira, a podre mídia brasileira, para tentar salvar da extinção os dinossauros linguísticos que o povo brasileiro há muito tempo já despachou para o museu.
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(*) Marcos Bagno é linguista, escritor e professor da UnB - marcosbagno.org

“Adorei Bagé! Tem casas antigas, do início do século XX, bem preservadas. 
Espero voltar outras vezes à Unipampa!”

Observação de Marcos Bagno em Bagé, feita em três de dezembro de 2012 quando palestrou na Unipampa.


1 de agosto de 2015

Porta dos fundos

Foto LC Vaz

PORTA DOS FUNDOS

Angelo Alfonsin

naquele dia
ele nem viu o sol nascer
olhou os sapatos sob a cama
como se quisesse contar quantos
passos já dera até aquele dia
desde que pisara o chão
pela primeira vez
viu que eram muitos
mas que nada significava
passos vacilantes
que iam para lugar nenhum
passos em descompasso
com o coração
por isso decidiu que partiria
por um caminho
em que não precisaria mais
de sapatos
e
se foi

18 de junho de 2015

Cal Max



Foto Luiz Carlos Vaz
CAL MAX

Sergio Vaz

Max nasceu pobre,
Na verdade
Nasceu Maximiliano
Da Silva Nobre.

Curtido na pedra
Criou-se vidraça.

Como o pai
Também era pintor,
Mas nada de Picasso,
Van Gogh ou Portinari.
Pintava parede, mansão,
Muro e pé de árvore.

Não tinha sonhos,
Mas se sonhasse
Seriam pretos
Seriam brancos
Cinzas de fato.

Morava em bairro comunista
Os vizinhos tinham em comum
A mesma miséria.

As mãos grossas
Nunca fizeram carinho,
Pra ele? Frescura.

No enterro
Depois que caiu do andaime,
Pouca gente
Pouco choro,
Nenhuma madame.

Lembranças?
Só a última pá de cal.
Jaz.
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Do livro "Colecionador de pedras", Global Editora
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25 de maio de 2015

Inferno



O Inferno de Dante, óleo de Sandro Botticelli
“Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivada na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas “com autorização da Justiça”? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.”
(Marcola - líder do PCC - entrevista concedida ao jornal O Globo, em março de 2.014)

Inferno

Helena Ortiz

Pois aí está. O pessoal da Lagoa, que há alguns anos pendurava faixas com "Basta", não se organizou suficientemente. Não acreditou suficientemente que estava alimentando o monstro. E agora está preocupado com a fome insaciável e cruel dos ladrões de bicicletas que os esfaqueiam e matam.

É horrível? É. 

Mas é horrível que aconteça em qualquer lugar.

O Rio de Janeiro não é mais a cidade partida. É uma cidade estilhaçada. Agora não importa se são ricos ou pobres, a violência apoderou-se de todos os espaços.  

Isso, já sabemos, é fruto da desigualdade social. Essa desigualdade social passa por falta de moradia, educação, oportunidade e respeito. Também por conta da indiferença com que os ricos olham os pobres em tragédias que parecem ficcionais e que aparecem, de relance, em suas grandes telas de tv. Agora (que susto!) esses bandidos mirins invadiram o território dos ricos. Daí a perplexidade. Os bandidos mirins já não são só figurantes na tv. Eles são protagonistas da vida alheia. Da morte alheia.

O que eu digo é tão antigo, tão repetido que às vezes também me parece banal.

Há poucas chances de diminuir essa discriminação que nos acompanha desde a escravidão e que não terminou com a abolição. Somos um país misturado governado por brancos cujo braço armado, a polícia, tem especial preferência por negros (para bater, prender e matar) sem que sequer reconheçam  a própria cor e a sua condição de discriminados: por serem pobres, por serem negros e por serem polícia.

Sim, a culpa não é toda da polícia. Não há uma política de Estado que se dedique a esse grande problema social. Não há ninguém que queira resolver nada. Todos estão confortáveis em seus lugares reservados.

E repetindo Marcola: Como escreveu o divino Dante: 

"Lasciate ogne speranza voi che entrate."  

Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno.
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Helena Ortiz é escritora, poeta e edita os blogs: