1 de abril de 2016

1º de abril. Apenas três lições nos "Anos de Chumbo"

O deputado Justino e a pequena Angelina. Arquivo da família.

1º de abril. Apenas três lições nos "Anos de Chumbo"

Angelina Quintana (*)

Minha casa, da infância em Bagé, era diferente. Morávamos com os meus avós, pais da minha mãe, as duas irmãs dela, três sobrinhas, meus dois irmãos e meu padrinho. No total, éramos 13. Mas, nem sempre foi assim. Esse formato de lar começou quando o meu pai, o deputado estadual pelo antigo PTB e ex-secretário de educação do Brizola, Justino Costa Quintana, foi cassado pelo Golpe de 64. Ele integrou a primeira lista de políticos gaúchos cassados e, quando saiu da prisão, só havia duas saídas: Deixar o país ou tentar recomeçar a vida em nossa terra natal. Optou pela segunda alternativa.

Meu pai falava pouco, lia muito e raramente saia de casa. No entanto, nunca perdeu o bom humor. Por isso, vivíamos em meio a muitos cuidados e recomendações. Entre a mais repetida: "Ninguém comenta fora de casa nada do que se fala aqui dentro." Dentro desse contexto, destaco três momentos emblemáticos na minha memória de criança. O primeiro foi quando cheguei do colégio e pedi que o pai me ajudasse a fazer o tema, mostrando-me no Diário de Notícias a foto do Governador do Estado, Euclides Triches, porque deveria colocar no meu caderno. O pai mostrou-me a foto de Triches e disse-me que eu não colocaria aquela foto no meu caderno, porque ele representava a ditadura militar. E, no local destinado ao tema, colocou um bilhete explicando as razões por eu não ter feito o tema. No outro dia, a professora leu, fez cara de braba e mandou que eu sentasse. Não ganhei, nem perdi nota. Ficou um pacto de silêncio no ar.

Na mesma década de 70, a minha memória registra outro fato marcante. A cidade de Bagé mobilizava-se para receber o presidente Emílio Garrastazu Médici e no meu colégio não foi diferente. Ao retornar do Grupo Escolar Mestre Porto, entreguei ao meu pai a notificação de que era obrigatório esperar a passagem do "ilustre conterrâneo" desfilar pelas ruas da cidade. Eu deveria estar uniformizada (de tapa-pó e lenço de seda marinho), com uma bandeirinha do Brasil em mãos e a desobediência representaria três dias de suspensão. Foi o momento em que o pai endereçou um novo bilhete à escola. Desta vez, destinado à diretora. Fui a única da minha escola que não fui saudar o presidente e não perdi nenhuma aula. E ninguém me perguntou o porquê?
Assim, fui aprendendo a lidar com o que se ensinava na escola e as verdades da minha casa. A terceira imagem e, talvez, a mais forte também foi na saída da escola. O meu colégio ficava às margens do Arroio Gontan -hoje canalizado e com várias construções irregulares erguidas sobre o seu leito- e, quando eu estava chegando na ponte, vi o meu pai saindo de casa escoltado por soldados armados e entrando num Jeep do Exército. Naquele momento, senti uma mistura de medo do que aconteceria com o meu pai e a vergonha das minhas colegas e amigas que assistiram a cena comigo. Não recordo quanto ele ficou preso, mas que somente a mãe ia visitá-lo e trazia notícias dele e garantia que logo estaria de volta a nossa casa. Ainda bem que, naquela época, eu não sabia que torturavam presos políticos.
Creio que, ali, começava a aprender a lidar com as mentiras de casa e as mentiras da rua. Depois, avançamos. E muito. Acompanhei com o meu pai o retorno dos exilados políticos, as eleições diretas para governadores e prefeitos das Áreas de Segurança Nacional (Bagé era uma delas), a luta pelas Diretas Já, a Constituinte de 1988 e lamento que ele não chegou a votar para Presidente.
Diante desse quadro, hoje comemoro que o Golpe de 64, do dia 1º de abril, ficou na História do Brasil como página virada.
Ditadura nunca mais.
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(*) Angelina Quintana é jornalista e amiga deste blog
Artigo publicado aqui mesmo em 2015.

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