12 de junho de 2020

A última noite no Hotel Sinuelo

Fotos: Luiz Carlos Vaz


A última noite no Hotel Sinuelo

Luiz Carlos Vaz (*)

Aprendi com minha Mãe que dia de chuva é dia de mexer na Caixa de Retratos. E hoje foi um desses dias. Mas as atuais Caixas de Retratos não são mais aquelas antigas e fortes caixas de sapatos Vulcabrás, feitas de papelão rígido, tipo para durar uma vida inteira. São os tais HDs (já foram CDs, lembram?), as memórias dos celulares ou a tal “nuvem”, que aliás, sempre quando alguém se refere a ela, lembro logo do Hermes Aquino, e da enorme chuva que cai há mais de 12 horas por aqui. Se o nome fosse castelo, muralha... tudo bem, eu até confiaria; mas “nuvem” é coisa passageira, que se precipita no primeiro ventinho mais frio ou quente e leva tudo por água abaixo; casas, pessoas e álbuns inteiros de fotografias familiares, apagando de vez a memória das gentes e das suas histórias.

Hoje cedo, lá pelas dez horas da manhã, quando nem o galo ainda tinha tido disposição para cantar, comecei a fuçar em uma dessas “caixas” e encontrei fotos que havia feito em Jaguarão, em setembro de 2018. Havia agendado para o Schlee, ainda em maio daquele ano, sua participação num Encontro de Literatura na Unipampa/Jaguarão para setembro. Percebi que era a oportunidade apropriada para o lançamento de seu mais recente trabalho, a noveleta pueblera, O Outro Lado, que eu acompanhava dia a dia.

Não informei isso à época ao Carlos Rizzon, coordenador do evento, nem à Catia, com quem confirmara a presença dele, pois precisava saber se o Aquino conseguiria editar o livro em tempo hábil. Mas tudo correu da melhor forma possível. O Schlee driblava uns assuntos relativos à sua saúde e a data de 26 de setembro ficou confirmadíssima. Teríamos o Escritor para a palestra – junto com seu novo livro, para, pela primeira vez, fazer um lançamento de uma obra sua, inédita, na sua Terra Natal! Isso me dava uma alegria muito grande, só comparável ao fato de ter sugerido ao prefeito Cláudio Martins que nomeasse como Uma Terra Só uma pequena rua ao lado do Mercado, até então sem nome, e que dá acesso ao Rio Jaguarão.

A edição da Ardotempo ficou primorosa, como sempre, e somente lá pelo dia 10 ou 15 de setembro, telefonei para a Unipampa e perguntei ironicamente ao Rizzon e à Catia, se era possível arranjar dentro da programação “hora e local para os autógrafos do livro inédito O Outro Lado!” Lembro da euforia deles, quase incrédulos com essa notícia.

Publiacação de Edições Ardotempo

Schlee havia finalizado esse livro, quase desapercebidamente, durante o árduo, longo e esmerado trabalho de finalização e correção do Dicionário da Cultura Pampeana Sul-rio-grandense, quando uma equipe de profissionais revisava, verbete por verbete, das mais de mil páginas do trabalho com que ele se ocupara nos últimos dez anos. O Outro Lado, previsto para ser lançado depois do Dicionário, nascia assim “antes do seu tempo”.

No dia 26 fomos de manhã cedo para aquela terra, que é uma terra só, o Schlee, o Paulo Sousa e eu. Nos hospedamos no hotel de sempre, o Sinuelo, e ao meio dia, depois de atravessar a Ponte, encontramos com o Perin e o Aquino na Fogatta. Schlee pediu todas as “achuras” de costume e, conversamos muito, rimos muito, mas não tínhamos como perceber as coisas como as percebia José Jacinto. Havíamos atravessado, juntos, a Ponte, mas com a certeza e a convicção de que faríamos isso muitas e muitas outras vezes, mesmo que fosse só por atravessar, sem ter nada o que fazer...

Numa agenda movimentadíssima durante a tarde, a Catia dirigiu a gravação de um documentário com ele no Theatro Esperança, tivemos tempo para um café com leite, conversas com amigos pelas ruas da cidade, e fomos para o Campus. Lá, centenas de alunos, vindos inclusive dos outros campi da Unipampa, ex-colegas do IPA, parentes, amigos e muitos professores, superlotavam o auditório.

Ele falou, respondeu perguntas e teve início a sessão de “autógrafos conversados”, coisa da qual ele nunca abriu mão, desde seu primeiro lançamento aqui em Pelotas, de Contos de Sempre, no dia 15 de junho de 1983. Já era quase meia noite quando telefonei ao hotel para pedir que “não fechassem o restaurante”, nós iriamos chegar em seguida. Não lembro a que horas conseguimos chegar para o jantar, mas teve mais conversa, mais risadas, agora estávamos sem ter nada para fazer, e pensamos uma porção de coisas. Depois fomos dormir. 

A noite era um encanto. Só podia ser encanto. Puro encantamento.

Pela manhã, quando saíamos pelo corredor para o café, bati despretensiosamente essas fotografias. Eu não poderia imaginar que estava registrando seus últimos passos por aqueles corredores, que aquela havia sido a nossa última noite no Hotel Sinuelo e que ele não atravessaria a Ponte uma outra vez.

Hoje, depois de achar essas imagens na “Caixa de Retratos”, eu lembrei de José Jacinto, sorrindo, olhando a sombra da ponte refletida na água, agarrada à sua própria sombra,
sem ter ido, porque sombra, mas indo porque rio.

Da mesma forma que José Jacinto eu procuro sorrir. Mas estou chorando.
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Luiz Carlos Vaz e Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

3 comentários:

Guilherme Schuch disse...

Bravíssimo!
Me transportei a Jaguarão em setembro de 2018 agora com a tua Caixa de Retratos.
Sem ter ido, porque passado, mas indo, porque memória.
Grande abraço e parabéns!

Ângelo Alfonsin disse...

Um texto de chorar, por melhores que sejam as lembranças, mesmo melancólicas, pela maravilhosa exposição emocional, pelo personagem único e eterno, pela vida como ela deveria ser.

Anônimo disse...

Mas bah, Vaz, que beleza de crônica cheia de revelações e citações. "Estou levando". Na verdade, estou copiando e anexando aos peçuelos relativos à vida e obra do Viejo de Jaguarão. Abs, Geraldo Hasse