26 de agosto de 2020

A última vez!

 


A última vez!

Luiz Carlos Vaz (*)


A última vez que estive no Mercado foi em 9 de março de 2020. Eram precisamente 17 horas e 15 minutos, segundo o registro do arquivo digital da última foto que fiz ali, do Deus Mercúrio. No dia seguinte fui com o Chapon fotografar o Canil, em outro fui pagar umas contas, jogar na loteria e passar na farmácia, como faz qualquer pessoa na minha idade. Tá bem, podem rir, e dizer “qualquer velho da tua idade”. Não me importo, isso significa que eu cheguei lá. Cheguei vivo e aposentado. (Agora, quem ri sou eu!)

Desde janeiro já circulavam notícias de uma epidemia de gripe na China, causada por um novo vírus, um vírus conhecido, mas mutante. Alguns parentes e amigos estavam viajando para lugares bem distantes, bem perto da cena original, como a Tailândia, ou dos desdobramentos e das consequências imediatas, como a Itália e a Alemanha... Alguns inclusive já tinham levado máscaras na bagagem, das mais simples às mais sofisticadas, para serem usadas no “antes, no durante e no depois” dos voos, dos aeroportos e dos metrôs lotados. E o assunto começou a ser tratado na imprensa internacional como Pandemia! Eu, preocupado, torcia para que fosse “apenas uma gripezinha”, pois nem todos que tinham viajado possuíam “um passado com perfil de atleta”. Só que não era mesmo uma gripezinha. Não foi. Não está sendo. Matou e está matando gente. Matou lá fora. E agora já mata aqui, mais do que o total da China até agora.

Dia 16 de março, uma segunda-feira, dois dias antes das escolas pararem oficialmente as aulas, iniciamos, consciente e responsavelmente, a nossa Quarentena. Passamos no supermercado para umas compras rotineiras, suficientes para uma ou duas semanas, como sempre se faz, fechamos a porta e demos início ao nosso conclave. Um conclave à moda vaticana, com vinhos, queijos e massas, para provocar o Alfonso. Não saí mais; parei de fotografar as ruas da cidade, seus passantes, suas portas e janelas, suas praças... e o meu Mercado. Não contei mais filmes ao Hillal, não comentei com a Suzana sobre as últimas fotos do Canezinho e muito menos marcamos data para comemorar a jubilación da Neia. Não compramos mais Tri Legal do seu Zé Colmeia. Não encontrei mais com a Mirian e a Angela nos dias de Feira Ecológica, nem com a Inara à procura das rapadurinhas da Dona Jurema e da Jani. A ida a Rio Branco com a Vera e a Julia, “só para comprar Nevex”, está suspensa... e me preocupo com o regime da Nazaré, pois não encontro mais com a Isolete comprando os petiscos para ela, ali pela volta do Escritório, o Central Café, da Carla e do Joaquin.

Tenho saudade das conversas com o Guilherme, com o Pellegrin, com o Fábio. Saudade de fotografar o Armando, sempre passando apressado por ali, mas também sempre parando para um papo rápido e fraterno. Do Torino não tenho notícias, nem sei continua indo à tardinha comprar pão na Molon. Outra pessoa querida, que sempre eu fotografava e que não vejo é a Baiana, sempre com um sorriso largo, dizendo que o meu artesanato está quase pronto (a essa altura... já deve estar). Não faço mais selfie com o Charles, para mandar para o Alex e o Bruno, como prova de sua incansável labuta... mas ainda soa nos meus ouvidos a maravilhosa música do Julio - Julinho do Cavaco, nos fins de tarde no Bem Brasil, onde o Rafles sempre estava tomando um suco de laranja e se deliciando com alguma coisa “sem carne”.

Não tenho mais notícias do Rodrigo, do rapaz das Duas Tesouras Por Dez Reais e nem do “meu afilhado”, que tem nome de desembargador - Júlio Fábio de Oliveira Domingues Lafuente, que é o único pedinte honesto, pois só pede “dois real para completar uma garrafa de cachaça”.

Nesses dias todos da Quarentena tenho me dedicado apenas a fotografar um sofá; ele foi jogado na calçada aqui da frente num domingo, dia 22 de março. E permanece lá, há quase três meses, impávido que nem Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri...

Já o Deus Mercúrio, que foi restaurado pela Isabel, não tenho mais visto nem fotografado. Imagino que ele esteja lá, em seu pedestal próximo ao portão de entrada do Mercado, pela rua Tiradentes, embora muitas vezes eu o tenha visto sentado ali, no tal sofá vermelho... tranquilo e infalível como Bruce Lee.

Mas... eu acho que o que vejo pela janela é mesmo só um sofá vermelho, sem ninguém sentado nele; um velho e surrado sofá vermelho, que foi jogado na calçada num dia de domingo. E eu detesto quando os sábados (e todos os outros dias dessa Quarentena) se parecem com um Domingo. Mismo que sea una vez, solamente una vez!

(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog
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Ilustra o post, a última foto que fiz do Mercúrio, o tal sofá - onde eu o vejo seguidamente sentado, e uma foto minha feita pelo Armando antes disso tudo começar. Arte JL Salvadoretti.

15 de agosto de 2020

Os velhos estão nus

 

Foto Luiz Carlos Vaz


Os velhos estão nus

O Athos escreve como fala. Como se tornou um bom contador de histórias, acaba nos colocando como ouvintes de seus relatos, e não como leitores. Dessa forma, o jeito é cevar um mate, e sem pedir licença, entrar na roda da conversa para ouvir esse narrador do cotidiano.

Aos poucos vamos descobrindo que a Trilogia dos Metais vai ganhando corpo com este segundo livro que sucede os Contos de Chumbo. Suas narrativas desta vez não estão mais situadas nos anos da ditadura, mas na fase da “prata nos cabelos” de seus protagonistas, que não pensem que se compõem apenas de velhinhos afáveis e bonzinhos.

Vamos encontrar nos contos desse seu novo livro inúmeros velhos de cabelos brancos, ou prateados - como ele diz, muito mais reais do que aqueles das famílias margarina. Athos não os endeusa, os despe; e nus, esses “moços da terceira idade”, vão nos remetendo a outros tantos que conhecemos, que já vimos, que já fotografamos ou que já ouvimos, quem sabe, quando por algumas vezes, falamos com nosso reflexo diante do espelho!

Depois destes, os de prata, já estou só pelos Contos de Ouro!

Luiz Carlos Vaz (*), aos 150 dias da Quarentena 2020

Contos de Prata, Athos Ronaldo Miralha da Cunha, Editora Penalux, 2020

https://www.facebook.com/athos.miralhadacunha

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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

11 de agosto de 2020

Navigare necesse; vivere non est necesse!

 


Navigare necesse; vivere non est necesse!


Luiz Carlos Vaz (*)

E de repente, não mais que de repente

o mundo virtual cai sobre a gente

explode nosso depósito de cuidados

sacode tudo, arrasta nossas vidas que,

envolta em uma fumaça tóxica,

não define mais o que era,

o que é ou que poderia ser...

as certezas, as dúvidas e os saberes

se desfazem no clicar descuidado em um botão

e revelam um mundo que não é simpático,

solidário ou afável

em cada esquina da rede

há uma "outra" rede

que busca, malha, preda e humilha

liquida os sentimentos, rouba a alegria e tira a nossa paz

Mas... como disse o general Pompeu (*) aos seus marinheiros:

Navegar é preciso, viver não é preciso!


Luiz Carlos Vaz é jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog,
teve seu celular clonado dia 10 de agosto e está P. da vida!

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"Navigare necesse; vivere non est necesse". Assim o general romano Pompeu, (106-48 aC.) se dirigiu aos seus marinheiros amedrontados que se recusavam a viajar durante a guerra. Citação feita por Plutarco, no livro A vida de Pompeu.

7 de agosto de 2020

Eu acho que lembro de vocês... ou L'année dernière à Marienbad

Imagens do Google
Eu acho que lembro de vocês... 

ou 

L'année dernière à Marienbad

 

Luiz Carlos Vaz (*)

 

Hoje revi L'année dernière à Marienbad, o filme de Alain Resnais que causou um verdadeiro frisson nos espectadores, lá nos já distantes anos sessenta. Ninguém mais foi o mesmo apreciador de cinema depois de assistir Marienbad. Resnais usou as técnicas da narrativa cinematográfica com criatividade e ousadia; plongées, contra plongées, cortes abruptos, sequências em ambientes quase infinitos, à meia luz, num preto e branco invejável, inesquecível, com todos os meios tons imagináveis. Um narrador de voz grave, e diálogos mínimos entre as personagens, nos conduzem em um labirinto de sedução montado em um antigo hotel, onde o tempo é inexplicável, intangível e, ao mesmo tempo, protagonista dos acontecimentos do filme.

Escrevo isso depois de rever o filme, pois assim tenho me sentido durante essa quarentena que já pode ter seu número de dias multiplicado por quatro. Fico dando voltas no tempo, num mesmo prédio, encontro sempre as mesmas pessoas, com roupas diferentes, e não sei mais se o hoje foi ontem ou o será só amanhã. Não faz mais diferença se é dia ou noite, se o que como e bebo é almoço, café ou jantar.

Chego até a janela e enxergo (ou imagino?) um extenso jardim quase sem fim, onde pessoas paradas, fixadas nos passeios como manequins, aguardam também que passe o tempo, os minutos e as horas que não fazem mais sentido... e eu mesmo tenho uma impressão de que já as vi antes, pode ser, não tenho mais certeza de nada, não sei se é memória ou só imaginação; deve ser o vírus, talvez... mas acho que já as vi antes, sim, foi no ano passado, em Marienbad...
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Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e editor deste Blog

3 de agosto de 2020

Filhos... Filhos? Melhor não tê-los!

Arthur em Curral Alto - Foto Luiz Carlos Vaz


Filhos... Filhos? Melhor não tê-los!
Mas se não os temos/ Como sabê-los?
                                                               Vinícius de Moraes
Luiz Carlos Vaz (*)

Há 15 anos minha vida mudou de rumo. Uma freada brusca mudou a direção natural que eu vinha seguindo. Diminuí as idas ao cardiologista e passei, novamente, a frequentar o pediatra. Parei de comprar os remédios para a pressão e comecei a me importar com o preço do Tylenol bebê e seus genéricos!

Voltei a frequentar as sessões infantis dos magazines de “roupas para toda a família”, o setor de brinquedos da América Latina, e as prateleiras de livros juvenis da Mundial. Comecei a buscar matrícula numa escolinha e a levar e buscar um filho no colégio.

De repente fui impedido de continuar o caminho da “terceira idade” e fui obrigado a me comportar outra vez como um jovem. Ensinar o filho a caminhar, a andar de bicicleta; comprar talco Jhonson e cantar as velhas canções de ninar voltou à minha rotina. Comecei a ver os netos também como filhos e todos acabaram crescendo juntos.

Hoje, quando o Arthur completa 15 anos, e vi pela porta do banheiro que ele estava fazendo a barba, só pude repetir a velha frase: Parece que foi ontem! O três de agosto de 2005 foi um dia quente, fez um calor que se estendeu até tarde. O Arthur nasceu às 19 horas, e naquela sua primeira noite entre nós, lembro que dormi de janela aberta no Hospital São Francisco, enquanto, no quarto ao lado, “Mãe e Filho passavam bem!”

Na família os papeis de pai, filho, tio, sobrinho e neto acabaram sendo uma coisa só, e há pouco tempo, nos encontros de Natal e aniversários, a criançada anda não sabia bem quem era primo de quem, quem era sobrinho de quem, e como era possível ter um irmão muito grande e um muito pequeno.

Sou um homem feliz. Tenho onze filhos. Seis com pimenta e cinco com açúcar! Descobri há pouco que o nosso sobrenome “Santos” está relacionado à família de Alberto Santos Dumont... por isso posso receber, já sem espanto, num mesmo dia, uma foto da gelada Antártica, uma do verão da Califórnia e outra do Canadá; pelo whats pode chegar uma imagem das muralhas da China, de um metrô de Tóquio ou Hong Kong; pelo Instagram fotos do museu Hermitage, em São Petersburgo, do Vaticano, da Finlândia, de Havana ou Varadero; cenas gravadas no Chile, no Peru, em Montevideo ou Buenos Aires... aventuras de um safári na África do Sul, passeios pela Áustria, em Berlim, na Tailândia ou nos Emirados; selfies tendo ao fundo Londres, Amsterdã, Paris e, claro, mostrando também as praias do Cassino ou do Hermena... “lives” feitas de Porto Alegre, das Minas Gerais, de Brasília, do Rio ou de Natal; mas também do Bolaxa, da Hulha ou de Rio Branco e Jaguarão.

E eu... continuo sempre correndo atrás deles, mas agora, claro, com a certeza de não poder mais alcançá-los e abraçá-los todos juntos, pois criaram asas e já não cabem todos na mesma fotografia.
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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e editor deste Blog