29 de abril de 2021

O meu bilhete premiado

 


O meu bilhete premiado

Athos Ronaldo Miralha da Cunha (*)

Encontrei um vendedor de bilhetes da loteria federal, bem ali na esquina da rua do Acampamento com a avenida Medianeira. Era sábado de aleluia.

Aleluia! A sorte me encontrou.

Era o último pedacinho que tinha. O preço de face estava em quatro reais. Ele pedia seis e paguei com uma nota de cinco e uma de dois. Ficou por sete, pois ele não tinha troco. Claro, fiz a conta mentalmente e deu um ágio de 75%. Um bom negócio... para o vendedor. Mas estava concorrendo a 50 mil. Para me consolar, calculei que tinha feito um ótimo negócio. Coloquei o “coelhinho de páscoa” no bolso e segui minha caminhada. 

Só na segunda-feira eu lembrei de conferir o tal bilhete de páscoa. Acertei a centena 530. O prêmio seria de R$ 42,00. Estou rico!

Acometido por um sentimento fraterno resolvi doar o meu bilhete premiado. Iria repassar para alguém que precisasse mais do que eu dos 42 pilas. Rumei para o centro da cidade.

Chegando na praça Saldanha Marinho abordei três pessoas que pediam “uma ajuda por favor” e que poderiam fazer um bom uso convertendo os reais do bilhete. Quem sabe um lanche na confeitaria Copacabana. Um cacetinho com mortadela na Kipão. Sei lá!

Dizia que estava doando um bilhete premiado. Bastava ir na lotérica e trocar por reais ou comprar outro bilhete se quisesse apostar na sorte.

Para meu espanto ninguém quis o meu bilhete premiado. Eu achei muito estranho.

“Esse povo está pedindo uns trocadinhos e recusam um bilhete premiado” pensei. Eram quarenta e dois reais, afinal de contas.

Antes de tentar pela quarta vez, fui abordado por dois policiais. Justamente o Pedro e o Paulo. E eles não estavam sorridentes e foram bem objetivos:

– Então, é o senhor que está oferecendo um bilhete premiado aqui na praça? E para as pessoas humildes? O senhor não tem vergonha na cara?

Me caiu os butiá do bolso!

Levou um tempinho até que eu explicasse que estava doando um bilhete com prêmio de 42 pilas. Entrei no saite da Caixa e mostrei para as autoridades que o bilhete era, realmente, premiado. Eu não estava vendendo. Era, apenas, um ato de caridade.

Naquela segunda-feira, cinco de abril, eu era o golpista do bilhete premiado na praça Saldanha Marinho. Desde aquele dia não cruzei mais pelo centro da cidade. Só irei ao centro para ostentar uma tornozeleira eletrônica, ora.

E o bilhete?

[Essa parte da crônica é para lembrar do “E a china?” do Jaime Caetano Braun, pois quase entrei num bochincho].

O bilhete eu joguei na primeira lixeira que encontrei no Calçadão. Talvez algum sortudo ache e resolva conferir.

(*) Athos Ronaldo, que é um santamariense por adoção, é um filho de ferroviário que nasceu em Santiago e estudou engenharia na UFSM. Foi funcionário da "Caixa", participou de algumas antologias, publicou vários livros de contos e já recebeu vários prêmios literários com eles. Uma de suas crônicas, o Zapzap das flores, publicada dia 20 de abril, está no recente Em prosa e verso, volume XIII, da Academia Santamariense de Letras. Athos, um colorado convicto, também está presente no livro de crônicas O gol iluminado, publicado em 2009.

20 de abril de 2021

O Zapzap das flores



O Zapzap das flores

Athos Ronaldo Miralha da Cunha (*)

Não sei porque cargas d'água alguém me adicionou em um grupo do Zapzap para falar de flores. Fiquei imaginando o que eu falaria de flores... veio em minha mente o premiado curta “Ilha das flores”, o sabonete “Alma de flores” e o Flores da Cunha. E parei por aí.

Não saí imediatamente para não ser mal-educado. E eu poderia aprender algo sobre flores. Algum manejo para deixar meu jardim mais florido. Sei lá, eu poderia aprender a cultivar rosas.

Na manhã do dia seguinte acordei com uma avalanche de mensagens no celular.

Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!

Durante todo o dia ninguém falou de flores. Uma guria postou a foto de girassóis com abelhas. Linda! Outra com borboletas e flores desfocadas ao fundo. Bela foto. Dona Margarida postou a foto de uma samambaia que, aliás, não tem flores. Mas relativizei, afinal era a Dona Margarida... uma flor.

Lá pelas 10 horas da noite começou outra saraivada de mensagens.

Boa noite! Boa noite! Boa noite!

Então eu fui no YouTube e copiei o linque da música “Pra não dizer que não falei das flores” e colei no grupo. Pensei que não poderia ser uma boa ideia e, realmente, não foi. Ato contínuo, seguiram os comentários exacerbados. Estávamos em período eleitoral e os ânimos acirrados.

#Bolsonaro17!

Vai pra Cuba!

Pão com mortadela!

13 de cabo a rabo – e carinhas sorridentes.

Cirão da massa 12.

Fiquei na moita e não comentei nada. Seriam estas as flores do mal? Nestas horas o silêncio é a melhor solução. Na manhã seguinte a mesma avalanche do dia anterior. Alguns incrementavam as postagens com emojis floridos.

Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!

E durante todo o dia ninguém falou das flores. Apenas o comentário e foto sobre Ora-pro-nobis dizendo que tinha muita proteína e era excelente alimento. Confesso que não sabia. Tinha certeza que aprenderia alguma coisa.

À noite a Dona Margarida postou a foto de uma erva-daninha. E um ramo de Macela colhida na páscoa passada. E a mesma ladainha.

Boa noite! Boa noite! Boa noite!

Então postei a foto de uma bandeja com laranjas, goiabas, bananas, bergamotas e maçãs. E a foto da ex-primeira-dama, Marcela, sorridente.

De vereda alguém retrucou.

Este grupo é para falar das flores! Juntando ao texto emojis raivosos.

Fui até a cozinha peguei um copo e enchi de leite desnatado, bati a foto e postei.

– Um copo de leite, pessoal! – comentei e em enchi a postagem com kkkkkk.

– Tu tá de brincadeira, né – alguém comentou.

Postei uma carinha risonha e fui dormir. Na manhã seguinte a mesma avalanche.

Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!

E ninguém falou de flores. Só que aconteceu o seguinte. Por volta das 13h30, logo após o horário político, Dona Margarida teve a brilhante ideia de dar “boa tarde” ao grupo, toda faceira. E foi outra avalanche.

Boa tarde! Boa tarde! Boa tarde!

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{Athos saiu do grupo}

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(*) Athos Ronaldo, que é um santamariense por adoção, é um filho de ferroviário que nasceu em Santiago e estudou engenharia na UFSM. Foi funcionário da "Caixa", participou de algumas antologias, publicou vários livros de contos e já recebeu vários prêmios literários com eles. Esta crônica, o Zapzap das flores, está no recente Em prosa e verso, volume XIII, da Academia Santamariense de Letras. Athos, um colorado convicto, também está presente no livro de crônicas O gol iluminado, publicado em 2009.