10 de fevereiro de 2022

E Abel foi conhecer a Criúva

 

Rogeane lendo "o Abel". Foto do arquivo pessoal

Rogeane Bertussi (*)


Prof Vaz!

    Como já disse, passei uma manhã no salão de beleza (tentando minimizar um problema causado por outro cabeleireiro) e aproveitei para ler. Aliás, sempre tenho algo para ler nas minhas bolsas, no quarto, na sala, no carro, na parada de ônibus … não perco tempo.

    Eu cresci ouvindo histórias, minha família gosta muito disso. E, ao ler as suas, lembrei-me de algumas das minhas, que descrevo abaixo:

    Pensei em começar comentando a história do safado do Abel. Mudei de ideia. Aquele fujão foi homenageado em nome de capa de livro … isso basta.

    É raro alguém admitir que fez o primário e o ginásio. Eu fiz, e na minha casa também tínhamos “Frigidaire”.

    Como você, eu apreciava “cumulonimbus”, mas deitada na grama, repleta de micuim, eu rezava pedindo que quem fizesse aqueles desenhos viesse me buscar, porque eu estava perdida entre três manos homens que contavam que eu havia sido deixada na porta, que a cegonha era muito magrinha (eu pesei 4,650 kg) … e me deixou cair … e isso me dava certeza de que eu não era daquela família e, quem sabe, nem do planeta Terra.

    Meus manos não me ensinaram a empinar pandorga. A minha nunca saiu do chão, por mais que eu corresse. Tentei ensinar meu filho… mas ensinar o que mesmo?

    Não me deixavam tocar no “estojo” deles; riam quando eu dizia que nunca via o passarinho na hora da foto; …

    Certa vez ganhei um concurso de redação na cidade de Caxias do Sul. Não era sobre o Dia da Árvore. Era sobre “Santos Dumont”.

    Nooooosssssa! Como eu fiquei feliz!

    O prêmio era um passeio de avião por cima da cidade. No dia marcado tinha serração demais; noutro ventava muito; chovia a cântaros; o piloto teve diarreia; perderam a chave do teco-teco… 16 tentativas e 16 desistências … Fiquei frustradíííííssima e ainda apanhei da minha mãe pela insistência. Ela cansou de me levar ao aeroporto.

    Para esquecer disso passei a voar nas leituras. Com isso, todos os meses, daquele ano e dos próximos, eu ganhava um lápis da bibliotecária, por ser a aluna que mais lia. (Todos iguais, pretos. E eu só tinha uma caixinha de 6 cores …).

    Eu nunca comi Tupy e aposto que você nunca comeu “tatu assado no casco”, sendo servido de colher pela sua mãe, fazendo você engolir - mesmo não querendo - aquela coisa “fedorenta” que impregnou, por dias, odores fétidos em toda a minúscula casa em que morávamos.

    Eu tinha muita dificuldade com comidas. Não gostava de nada e normalmente era forçada a comer.

    Você “quase viu” o Pelé jogar, “assistiu” o Roberto Carlos e eu “conheci e passei alguns dias” com Anna Sharp, neta da Ana Emília Ribeiro da Cunha, amante do Dilermando. Ela é amiga do meu mano Cidnei, que mora no Rio de Janeiro, e tive a oportunidade de visitar a casa dela em Santa Tereza, repleta de fotos antigas.

    Também usei caderno Avante mas estava doente no dia em que o fotógrafo foi na escola, por isso não tenho foto sentadinha, na classe, com o globo à minha esquerda. Outra frustração …

    La na Criúva ainda tem a mesma praça, o mesmo banco, o mesmo número de habitantes, em torno de 2000. Nascem, crescem, vão embora, voltam, morrem e sempre tem 2000. O que mudou é que a tradicional festa anual do Divino Espírito Santo está cada vez maior, perdendo apenas para a Festa da Uva.

    No tempo em que usava maria-chiquinha o que me cativou foi “Emília na Casa das Chaves”. Foi assim que a professora Maristela intitulou uma breve leitura como introdução ao livro de Monteiro Lobato. Fiquei fascinada com aquilo de abrir uma porta, entrar em algum lugar e mudar de tamanho. Na biblioteca da escola não encontrei o referido livro. Passei anos procurando por ele e somente quando eu já tinha mais de 50 anos uma professora me disse: esse não é o nome correto do livro. O certo é “A chave do Tamanho”. Procurei na internet, comprei, chegou meio detonado … mas adorei a história.

    Na Criúva, nunca ouvir falar em arsênico e por lá as mortes frequentes foram por enforcamentos.

    Já na cidade, meu pai comprou nossa primeira TV para assistirmos a copa de 70. E era só isso que podíamos assistir. Então meus manos continuaram frequentando a janela de uma vizinha, para assistir o Ted Boy Marino e os “soqueadores”. Eu, não largava o Almanaque do Biotônico. E no ano anterior, na janela da vizinha, fiquei muito empolgada com a possibilidade de fugir de casa e ir para a lua. Se o “Nil” pisou lá eu também poderia. O que me amedrontou um pouco foi pensar como eu usaria o remédio da asma com aquele capacete … mas seria bem legal só engolir comprimidos e nunca mais ter que comer feijão, carnes, repolho, tatu …

    Não vou relatar aqui “as frases que ficaram” para não competir com as do relato obsceno no (quase) tudo sobre minha mãe. Acontece que sou descendente de mãe italiana e embora com muitos tios, primos e irmãos, não aprendemos a usar as primas pobres das palavras (palavrões) e, quando isso era necessário, os mais velhos falavam em italiano, num dialeto que não nos foi permitido aprender porque com a guerra havia sido proibida a língua italiana na região. Mas pelas caras … sabíamos que não eram boas coisas.

    Meu pai também tinha um medicamento similar ao Conmel. Fora receitado pelo farmacêutico que por lá aparecia de tempos em tempos. O medicamento milagroso podia ser feito em casa: bastava um vidro limpo que devia ser ocupado com “mastruz”, também limpo, e preenchido com cachaça pura, sem qualquer adição de açúcar. Para qualquer mal, um gole daquele coquetel horrível era ministrado, inclusive para crianças. Pior do que aquilo… só a Emulsão de Scott, que muito tomei.

    Nunca ouvi falar em cal virgem por lá. O doce de batata doce era o gran finale dos almoços de domingo.

    Meu pai trabalhava no moinho e viajava de caminhão entregando trigo. Ficava dias fora de casa então pensou que um cão poderia nos dar uma certa segurança. O nosso “Ali” chegou no final da tarde e na manhã do dia seguinte foi levado embora. Ele latiu a noite toda e ninguém dormiu. Meu pai não gostou nada daquilo. Então, nada de gatos, cachorros, periquitos … somente bois e galinhas.

    Adorei a história da Cabrita e seus ensinamentos.

    La em casa volta e meia uma das nossas galinhas ia para a panela e nenhum de nós queria almoçar. Elas tinham nomes e costumávamos olhar no fundo dos olhos delas. Então era sempre uma tristeza quando uma desaparecia misteriosamente para aparecer na panela mais tarde.

    Foram tantas as lembranças que o seu livro me trouxe... Dava até para escrever um livro, mas para quem tirou apenas "um 7" no trabalho sobre o Repórter Esso… é sonho demais.

    Querido prof. Vaz, muito obrigada por ter socializado algumas das suas memórias no A História de Abel.

    Adorei, só lamento não ter percebido, nos tempos em que fui sua aluna, o que aquele sargento observou.

    Abraços carinhosos com desejos de que muitas outras memórias possam ser eternizadas.

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Rogeane de Fátima Bertussi nasceu em Criúva, distrito de Caxias do Sul (RS); é Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas (UCPEL); pós graduada em Administração Bancária (FEBRABAN); atua em instituição financeira estatal há 36 anos e como cerimonialista há mais de 30; e, voluntariamente, no Movimento Espirita há 25 anos.

Tem como hobby ler, viajar, conhecer outros povos, outras culturas, museus, igrejas, assistir filmes …

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9 de fevereiro de 2022

A História de Abel

 

Foto Inara Veleda Dias


Flávia Schlee Eyler 

Um livro e tanto! Enfrentar os meandros da dona Memória é aceitar o traiçoeiro poder das musas. Em nossa tradição elas são capazes de dizer o presente, o passado e o futuro, mas também são capazes de inventar.

Atravessados pelos mistérios do tempo, os homens, seres dotados de memória, vivem a tensão entre impulso e liberdade, acaso e necessidade, vontade e poder entre outras tantas forças do querer. Construir um mundo para si, é tarefa humana complexa e diversa nas mais distintas culturas. A pauta das possibilidades humanas é inesgotável e as dificuldades também. Assim, sob a chuva que vai chover, o sol que vai nascer e se pôr, as estações que vão se suceder, o dia e a noite que vão se alternar, os vulcões que vão entrar em erupção ou não, criamos mecanismos que possam garantir o mínimo de previsibilidade. Na impermanência das permanências ou vice-versa, há incontáveis formas com as quais seres humanos podem contar.

O caso do processo civilizatório ocidental, com sua crença no progresso, é uma faceta, das mais perversas, da capacidade humana de construir um mundo. Neste caso, um mundo ancorado em crenças e demonstrações que ignoraram qualquer conceito sobre a vida humana que saísse do idealizado. Longe de considerar tal questão, é preciso perceber que, por mais cruel e forte que a dominação ocidental tenha sido, ela jamais conseguiu implantar e controlar a vida humana. Mesmo sob as mais terríveis e violentas condições de sobrevivência, a vida se impôs e é neste sentido que a leitura de História de Abel se mostra, para mim, como benção e possibilidades.

Cada uma das crônicas é um cais em que podemos pedir abrigo e reconhecer com segurança traços comuns no sentido mais humano de um pertencimento compartilhado. Tradições milenares são apanhadas nas redes que arrebanham coletivos. Há rebanhos, cardumes, matilhas, constelações, lonjuras e muitas infâncias embrulhadas em cada cais do grande cais que é a vida escrita por Luiz Carlos Vaz! As fotos e as imaginações são capazes de nos incluir em genealogias rurais, urbanas, vilarejas, aéreas e marítimas. Filiação de sangue, mesa, cama e banho nos confortam em cada cais e realmente a memória ganha o tamanho das musas, de todas elas: Calíope, Clio, Érato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Terpsícore, Talia e Urânia.

Desta forma, o grande Cais de Vaz se desdobra entre as nove musas com poesias erótica, lírica, heroica, cômica e trágica; com a história, a dança e a astronomia.

Uma festa da qual sinto orgulho imenso em participar!

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Flávia Maria Schlee nasceu em Seara (SC), possui graduação em História (PUC-Rio), Mestrado (UFF) e Doutorado em Literatura (PUC-Rio).

Professora e pesquisadora em História Antiga e Medieval (PUC- Rio). Professora e pesquisadora no Mestrado e Doutorado em História Social da Cultura (PUC- Rio), na linha de Teoria e Historiografia. Área de interesse: relações entre linguagem e mundo na escrita literária e poética ocidental em língua portuguesa.