14 de novembro de 2022

Sábado

 

Montagem com fotos publicadas em vários perfis das redes sociais


Jorge Santos (*)

    Noite de sábado, não dá prá ficar em casa. Olho a rua pela janela e assisto a chuva que rola mansamente pelo telhado. A mãe já está dormindo. Nos pés, calcei uns tênis de lona, não sei se saio, não sei se fico. Mas a chuva é fina, acho que vai dar prá encarar. Passei no Kanto Kente, ontem, comprei uma calça Gledson de brim delavê e uma camisa Levi´s bem legal. A vendedora Cátia disse que combinam com meu All Star azul-marinho. Já passa da meia-noite, a vinheta da Globo indica que a Sessão Coruja está começando e eu ainda em casa.

Daqui a pouco passa o Cohab Linha 2 da meia noite e trinta e vem cheio. A  turma do bairro não vai se importar com essa chuvinha. Vou passar um perfumezinho, acho que o Denin tá bom. Tem Água da Fonte no Círculo Operário Pelotense e o San Remo toca no Planalto, dúvida cruel. Vou descer do ônibus na Deodoro esquina com a Voluntários, caminho até o Calçadão da Andrade Neves prá tomar uma caipirinha no Forno. Lá eu resolvo. Acho que vou até Círculo Operário curtir o Água da Fonte. Aquela mina canta muito. O ônibus tá chegando, hora de partir.

Como imaginei a turma da Cohab-Tablada não se assustou com a chuva fina que cai e o ônibus está lotado. Quase todas as janelas fechadas por causa da garoa. O cheiro no interior de um ônibus em um sábado à noite não é o mesmo cheiro de uma sexta-feira à tardinha. As gurias da Tablada, sempre muito cheirosas, capricharam. Os perfumes de sabonete Phebo, de Neutrox, de Almíscar e do Patchouli se misturam no ar.

Opa, já estamos no Centro. O cheiro de filé e cebola na chapa invade o coletivo. É a Bento. Vontade de descer e comer um bauru. Mas, ainda é muito cedo. Se sobrar uma grana, mais tarde, quem sabe? ...Nunca sobra. Desço na esquina da Deodoro com Voluntários e sigo em direção ao calçadão. A noite está feia, a umidade escorre pelas paredes escurecidas pelo cimento penteado, mas aqui no Centro não chove.

 Em frente a um prédio antigo com a parede amarela e um luminoso de neon com defeito encontro com Veridiana. Me contaram que ela já foi Rainha em um clube em Pedro Osório ou Dom Pedrito, não lembro direito. Veio prá Pelotas cursar faculdade e arrumou um trabalho nessa casa. Um tubinho preto muito justo, todo em couro, cobre seu corpo magro até um palmo acima do joelho. Nos pés, ela calça uma bota preta com um salto médio, também de couro, marca Catleia número 36 (fui eu quem vendeu). Lembro-me dela sentada na poltrona da loja com uma minissaia bem curtinha e eu ajudando a calçar a bota com o nariz a um palmo de seu joelho. Uma gabardine clara desabotoada na frente a protege do frio e da chuva fina. Na cabeça, um pequeno chapéu de abas curtas e plumas coloridas.

-E a bota ficou boa?

Ela me olha, sorri, traga um fino cigarro e responde ao mesmo tempo em que solta a fumaça;

-Claro, olha só!

Ela compra roupas caras para seu trabalho e trabalha muito para pagar essas roupas. Sigo meu caminho.

Na esquina da Osório, saindo da Padaria Antônio Maria, ouço a voz do meu amigo Mário:

-Jorginho, prá onde vais?

-Círculo Operário. Vamos nessa?

-Claro que não, vou pro Chove. Lá tem concurso de Break.

Durante a semana o Mário tem o cabelo curto, rente à pele da cabeça. No sábado à noite o cabelo vira black power. Não sei como ele faz isso. O meu amigo coleciona LPs de Black Music, prêmios conquistados nesses concursos de dança.

Entro no Forno, não há ninguém conhecido. A lancheria esta quase vazia. Não vou ficar. Mais adiante, um amigo de infância que não vejo há um longo tempo vem ao meu encontro: o Gerinho.

-Gerinho? Nunca mais te vi.

-Claro, Jorge, fui prá São Paulo ficar famoso.

-Ha,ha. E conseguiste?

-Mais ou menos. Vim ver minha mãe e volto segunda.

-Legal. Prá onde vais a essa hora?

-Num lugar chamado Misturança. Conheces?

-Já ouvi falar. É só dobrar na Quinze, no meio da quadra.

-Vem junto?

-Não! Melhor, não. Boa noite.

O Gerinho tem quase um metro e noventa de altura e ainda caminha sobre um Scarpin com quinze centímetros de altura. Ele dobra a esquina e desaparece. Talvez a gente nem se veja mais.

Logo à frente avisto duas garotas que devem ter entre dezesseis e dezoito anos. Vestem jaquetas e minissaias de couro, calçam coturnos, usam correntes penduradas pelas roupas e tingem os cabelos de roxo, verde e vermelho espichados para cima. Aproveitam o escuro da rua para pichar uma parede recém pintada com os dizeres: ''OS NAJAS''. Conheço essas minas do calçadão. De dia são bem comportadinhas.

Já ouço o som do contrabaixo. Aos poucos, a voz da cantora começa a surgir à minha frente. Pouca gente em frente ao clube. Muita gente lá dentro. Pego o ingresso e entro. As luzes do conjunto e um globo giratório no centro do salão diminuem um pouco a escuridão.

Como diz o Lulu: Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite.


(*) Jorge Santos é morador da Praia do Laranjal, é meu amigo, e seguido publica “nas redes” uma série de crônicas que tem o título geral de Histórias do Jorgito. Isso vai virar um livro, ah vai!

 

Nenhum comentário: