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Minha coleção - incompleta, das obras do Padre Carlos. Foto L.C. Vaz |
“No fundo o bandido é quem dá um sentido ao mocinho”
Carlos Moraes na crônica O Lobisanjo, publicada em 1970
Geraldo Hasse (*)
No final de 2024, passaram batidas duas datas importantes para quem nasceu na Campanha Gaúcha: os cinco anos da morte do escritor Carlos Moraes (1941-2019) e os 20 anos do lançamento do livro “Agora Deus vai te pegar lá fora” (Record, 2004), no qual o ex-padre nativo de Lavras registrou com inigualável bom humor a temporada de um ano (1970) que passou numa cadeia da Rainha da Fronteira como hóspede do governo militar.
Embora seja uma crônica extraordinariamente saborosa (288 páginas) sobre fatos ocorridos nos primórdios dos chamados “anos de chumbo”, esse livro não passou da primeira edição. Por que? Não sei, mas arrisco algumas hipóteses. Talvez tenha sido pouco promovido pela editora. Pode ser também que os críticos de literatura e até os resenhistas de plantão na imprensa o tenham confundido com uma obra religiosa sem conotação explícita com a política, o regime militar e temas conexos. Afinal, na capa constou um subtítulo obscuro: “Anotações de um padre preso numa cidade sem zoológico”, sugerindo que o prisioneiro foi tratado como um bicho raro na terra natal do general Garrastazu Medici, onde moravam seus pais e irmãos. Na realidade, a própria narrativa indica que ele não sofreu maus tratos. Portanto, se o livro não “estourou”, foi talvez por ter sido lançado três décadas depois do acontecido. E não chegou como denúncia, mas como uma proposta de reflexão e entretenimento, sem falar da luta armada ou da teologia da libertação, dois temas 'obrigatórios' para a esquerda. No fundo, o mercado literário estava saturado de obras sobre a ditadura militar enfim vencida. Seria no entanto impróprio dizer que o livro foi um insucesso, pois sua história fluente e sincera continua conquistando elogios. “Sou fã de carteirinha do Carlos Moraes e não consigo entender porque um sujeito assim não é mais famoso e lido que o Paulo Coelho”. O comentário foi escrito em 2011 pela designer Ligia Fascioni, engenheira eletricista formada no final do século XX na UFSC e moradora de Berlim, onde trabalha e mantém um blog.
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Guardo com carinho O Lobisanjo autografado em 1971. Foto L.C. Vaz |
Eu também me tornei fã desse cara a quem os amigos sempre trataram por Padre, nunca por Carlos ou Moraes, e menos ainda por Gilberto, seu nome do meio. Recém-chegado a São Paulo, conheci-o no verão de 71/72 durante um encontro de peladeiros de fim-de-semana num dos campos de futebol da USP no bairro Butantã. Nada mais bizarro: não sei se por exibicionismo ou porque não tinha o fardamento adequado para a prática esportiva, ele vestia bombachas e calçava alpargatas, uma combinação capaz de deixar um gaúcho bem à vontade em ambientes sulinos como canchas de bochas ou de carreiras de cavalos. Em São Paulo, mesmo considerando que havia gaúchos na pelada, era absoluta novidade. Lembro bem desse episódio porque, na hora do racha, o gaudério arremangou as bombachas e, para correr com maior desenvoltura, desfez-se das paragatas e jogou descalço, revelando possuir intimidade com a peronha. Depois, nas conversas regadas a cerveja, mostrou-se modesto e reservado, mas disposto a arriscar algumas frases irônicas naquela roda de jornalistas e intelectuais. Não foi difícil para ele enturmar-se com os peladeiros da USP, entre eles Joel Rufino dos Santos, da revista Realidade; Raimundo Rodrigues Pereira, da Veja; Elmar Bones, idem; Laerth Pedrosa Jr, da DPZ; Sergio Pompeu, da Veja; Enio Squeff, já no Estadão, após participar da redação pioneira da Veja. E havia ali professores como Italo Tronca, todos críticos da ditadura e solidários com a história pessoal do ex-padre recém-chegado à selva de cimento e asfalto.
Chegou com uma mão na frente e outra atrás, fruto de seu voto de pobreza, mas carregava na mão uma arma poderosa: o livro de contos e crônicas “O Lobisanjo – Vida e Obra” (Vozes, 1970). Foi esse personagem bizarro que lhe abriu as portas da Editora Abril, onde encontrou dois conhecidos de Porto Alegre: Enio Squeff e José Antônio Severo. Eles lhe conseguiram uma vaga como repórter principiante na redação da revista mensal Realidade.
De repente, aos 30 anos, Moraes estava sem o guarda-chuva da Igreja Católica. Livre por vontade própria dos votos religiosos, causou certo alvoroço nos corredores da poderosa Abril, onde trabalhavam centenas de mulheres. Sua primeira matéria foi sobre as peripécias de um ex-padre à procura de trabalho na Paulicéia... Essa pauta, criada para servir como teste de aptidão, acabou revelando que o candidato em busca de emprego era um repórter talentoso. Uma de suas sacadas foi escrever que, ao chegar a São Paulo, “a pessoa veste um capote cinza e desaparece”, alusão ao céu nublado e poluído. Ficou cinco anos na revistona da Abril, onde conviveu com cobras do jornalismo como Audálio Dantas e José Hamilton Ribeiro, o repórter que voltara do Vietnã sem uma perna, esmigalhada pela explosão de uma mina terrestre.
Já ambientado em São Paulo, em meados dos anos 70, passou a editar a revista mensal Psicologia Atual e, depois, pilotou por vinte anos a Ícaro, revista de bordo da Varig. Na luta para administrar textos alheios, aprimorou seu estilo original, que desde sempre se apresentou como uma prosa meio rústica, feita de frases curtas, recheadas de tiradas filosóficas, ditados campeiros e citações bíblicas. No meio de tantas atividades jornalísticas, encontrava tempo para escrever ficções e ensaios. De minha parte, posso testemunhar que nas mais de quatro décadas que viveu em Sampa ele foi um devoto do trabalho. Nas horas de folga, lia e escrevia. Mas nunca deixou de se comportar sinceramente como um adepto fiel da filosofia de Cristo.
Depois do primeiro encontro futebolístico na Cidade Universitária de São Paulo, às vezes confraternizamos em eventos fortuitos em São Paulo. Em 1972 um dos pontos altos de sua militância religiosa extra-oficial foi casar o pelotense Laerth Pedrosa Jr. e sua namorada escocesa em cerimônia singela na casa dele na rua Dona Elisa, coincidentemente, atrás da igreja católica do bairro Perdizes. Em 74 ou 75, quando o Inter esteve por cima, nos reunimos na arquibancada do Morumbi para ver nosso time vencer o São Paulo. Estavam conosco outros gaúchos: Enio Squeff, Gilberto Pauletti, Helio Gama, Jorge Escosteguy e Jorge Polydoro. Muito tempo depois, já bem no final dos anos 80, o reencontrei num churrasco na casa de José Antônio Severo no bairro Pirituba, em Sampa. Uma vez ele me encomendou um frila para a Ícaro, revista de bordo da Varig – eu morava então no Espírito Santo. Outra vez cruzamos num evento tipo boca livre promovido por uma vinícola em Bento Gonçalves. O fotógrafo Amilton Vieira (Globo Rural) nos viu juntos, ambos de camisa amarela e chapéu de palha, e fez a foto batizada como “Dupla Caipira”. Tínhamos em comum a origem gaúcha, o ofício de jornalista, o gosto pelo futebol e o apego aos livros. Apesar de tantas afinidades, ele nunca esteve na minha casa e eu jamais estive no apartamento dele em Sampa ou no sítio litorâneo em Boiçucanga. Ele era um cara naturalmente reservado mas, na era da internet, de vez em quando mandava fotos do pátio onde brincava com os netos chilenos. Sim, ele foi casado. Primeiro com Patrícia, chilena com quem teve um casal de filhos. Depois da separação, passou a viver com Bete, artesã de cerâmica com quem viveu até seus últimos dias. Enquanto esteve a serviço da Varig, viajava frequentemente para o Chile para ver os filhos.
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Uma das poucas e últimas imagens do Carlos - Foto da Internet |
Nascido em 14/12/1941 em Lavras do Sul, filho de uma professora rural e seu marido tropeiro, criou-se na fazenda da família do ator Paulo José, cujo pai era um médico muito recomendado. Graças a essa criação campeira, conviveu com pobres e ricos da Campanha até internar-se em dois seminários católicos – dos 12 aos 18 anos, em Pelotas; dos 18 aos 24, em Viamão, de onde saiu padre de verdade -- progressista, sim, mas sem radicalismo. Seu inconformismo com as injustiças sociais era expresso em sentenças sutis como “Se falta lã para alguns, a culpa não é das ovelhas”, equivalente a um tapa na cara dos estancieiros de Bagé.
Padre guacho na periferia de Bagé, sem paróquia, foi preso sob a acusação de fazer “guerra psicológica adversa” em sermões, palestras avulsas e reuniões de base. Na real, era um tipo incômodo para a Igreja Católica, mas esteve longe de agir feito um pregador revolucionário como Pedro Casaldáliga na Amazônia. No livro “Agora Deus vai te pegar lá fora”, ele começa explicando o absurdo de ser preso sem uma acusação objetiva ou um fato concreto. O que fazia era pregar o evangelho cristão. Seu amigo advogado o acalma e ele vai se entrosando com os outros presos, a ponto de encher boa parte do livro com causos, episódios e histórias dos colegas de infortúnio. Chega a organizar um torneio de futebol em que os prisioneiros defendem times como Abigeato e outros nomes de crimes. Na verdade, depois que o processo foi anulado pelo STM, amigos concluíram que Moraes fora vítima de uma intriga envolvendo a senhora de uma autoridade militar que teria tentado em vão seduzi-lo. Faz sentido. Além de espirituoso, ele era boa pinta, parecido com o ator Osmar Prado.
Sinceramente despojado de ambições materiais, manteve o hábito de praticar o cristianismo original, isento da hipocrisia do catolicismo e de religiões similares. Gostava de escrever, conversar e disparar frases morais em sermões fraternais. Também dava escuta aos pobres e oprimidos. Não fosse tão acanhado, poderia ter sido um Frei Betto ou um Leonardo Boff. Seus bilhetes e cartas vinham carregados de genuíno afeto campesino, esse sentimento tão próprio dos nascidos na campanha gaúcha. Frequentemente se declarava perdido “como formiga em baile de quero-quero”, metáfora campeira de fácil entendimento para quem vive na correria da sobrevivência.
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Livros do Padre Carlos, do Geraldo... Foto L.C.Vaz |
Voltando ao início deste texto: “Agora Deus...” confirmou o que eu já sabia desde a leitura de matérias suas e outros livros de sua lavra sulina. Em 1981 ganhou um Jabuti com “A Vingança do Timão”, um romance infanto-juvenil em que o time da garotada do bairro é treinado por um operário em horas de folga. Também escreveu um livro de orações (na real, poemas) sem precedentes. Em uma das preces pede a Deus que lhe dê paciência para suportar a derrota do próprio time – ele torcia pelo Corinthians, o Internacional e o Grêmio Bagé. Nos seus versos deixou um ensinamento líquido e certo: boa é a frase curta. Coisa difícil de achar no cipoal das palavras.
Pois esse cara excepcional deixou um dos mais ricos relatos sobre a repressão política nos primeiros anos da ditadura militar 1964-85. Na moral, “Agora Deus...” é de fato seu melhor livro publicado, não só porque se baseia em fatos reais, mas por revelar um humanista-solo, sem vínculos partidários ou fixações ideológicas. Se tinha um partido, era o cristianismo, característica que já transparecia em “O Lobisanjo”, seu primeiro livro, no qual juntou 38 crônicas sobre suas vivências como seminarista, jogador de bola, poeta e sacerdote. Em todos os seus escritos, não há pedidos de vingança.
Vira e mexe, ei-lo a abordar temas fundamentais para o ser humano: a liberdade, a fé, o sexo, tudo fluindo com rara leveza, como se o autor quisesse convencer o leitor de que no fundo tudo isso não importa. Reflexo, a meu ver, de sua humildade.
Os parágrafos acima se me vieram de improviso, sem consulta a qualquer arquivo pois, infelizmente, toda a conversalhada digital mantida com ele se perdeu, tragada pelos buracos negros da informática. Na verdade, Moraes foi mais próximo de outros amigos gaúchos que, como ele, ficaram para sempre em São Paulo – Laerth, Severo, Squeff...--, enquanto eu parti para outros lugares, de onde me comunicava eventualmente com ele por email. Aos amigos mais chegados, comentava os progressos e entraves de seu mais ambicioso e acalentado projeto – um ensaio sobre quem foi o primitivo Jesus. Creio que tenha trabalhado nele por mais de 20 anos, com intervalos só para refletir, sem nada escrever. Às vezes retomava os escritos e enviava trechos. A seu modo enviesado, pedia comentários. E foi levando, sem alarde. Nessa busca, concluiu que, em nome do crucificado, as igrejas se tornaram instituições trimaterialistas. Grande Moraes.
Quando terminou o trabalho, no final de novembro de 2019, despachou cópias para três editoras e para alguns amigos com quem possuía afinidades religiosas ou filosóficas. Cultivava a esperança de uma publicação sem delongas ou grilos. E quis aproveitar o tempo de espera para cuidar da saúde. Dispôs-se então a passar por uma cirurgia longamente adiada. No dia em que completava 78 anos, morreu na mesa de operação. Sua crítica ao totalitarismo eclesiástico permanece inédita. Mas o espírito do lobisanjo continua solto por aí.
“Este mundo é insolúvel,
penso. No fundo o bandido é quem dá um sentido ao mocinho.
A terra nem é bem
redonda e a lua anda com leucemia.
Os certos já estão
enchendo e os loucos não se organizaram ainda.
E perguntar caminhando
é chato, quando a gente vê a resposta já passou.”
Carlos Moraes, O Lobisanjo, 1970
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(*) Geraldo Hasse é jornalista, autor de livros acháveis em
sebos.
Publicado na revista digital Parêntese, em 31 de janeiro de 2025
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Nota do Editor: Este Blog publicou várias postagenes sobre o Carlos, inclusive esta com comentário dele, ao final, intitulada Felizes? Sim, que pode ser lida neste link:
https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2010/02/lobisanjo.html
E neste link a cônica que ele comentou: Felizes? Sim...
https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2010/01/felizes-sim.html
Crônica às nove era o jogo
https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2010/03/as-nove-era-o-jogo_11.html
E aqui a notícia do seu falecimento, que nos foi passada pelo colega Sergio Saraiva:
https://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/2019/12/faleceu-o-padre-carlos.html
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