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Aplicação de GIMP em imagem da web por J L Salvadoretti |
Minhas Lições
Vera Luiza dos Santos Vaz
Abril, com seu
jeito de final de verão, sempre me encontrou meio pensativa desde a infância.
Pensar,
repensar, observar, tentar entender, sempre fizeram parte de meu andar através
do tempo...
Explicar-se-ia,
assim, talvez, o meio estranho modo de olhar e tentar viver a vida?
Neste início de
abril, em que completo meus sessenta e cinco outonos, percebo em mim ainda a
presença forte da guriazinha dos cachinhos de ouro, como a mim se referiam as pessoas,
fazendo comparação com a menininha que enfeitava uma das leituras do livro
MInhas Lições, no segundo ano do Curso Primário, nos idos de 1956, na Escola
Santo Antônio em Bagé.
De índole
absolutamente sincera, sempre me foi difícil dominar o impulso de defender
solenemente a verdade, a justiça.
Ah! Quanta
encrenca esse jeito simples, mas forte, me trouxe, enquanto não pude entender,
não sem profunda dor, que a verdade,
muitas vezes, deve se fazer de morta, cedendo lugar, embora temporariamente, à
deslavada mentira...
Antigos dias me
encontraram pensativa, diante da incapacidade de concordar com o que
considerava errado, injusto, maldoso até.
Chovia naquela
manhã distante e fria de final de abril. Chuva fina, persistente, não nos
impedia de ir à escola. O sentido do dever começava cedo, tanto para mim, como
para meus irmãos e minha irmã.
A professora
Joana marcara como tarefa para casa uma "infinidade de contas", assim
eu sentia. Os cálculos, que deveria trazer no dia seguinte, "armados e
resolvidas", do 100 aos 300 para dividir por um certo número, não lembro
qual. E assim seguiam diariamente...
Passava a manhã na escola. A tarde, já sabia, era
dedicada aos benditos temas, sempre intermináveis.
Algumas vezes,
minha mãe e minha irmã me ajudavam nos deveres, porque percebiam que sozinha,
deles, não daria conta. Sempre havia uma cópia de um texto do livro, mais todos
os exercícios propostos para a lição, copiados e feitos no caderno.
Também marcara,
naquele dia, a professora, como matéria de estudo "toda a tabuada" de
multiplicar!
Aos poucos,
naquela fria e chuvosa manhã, os alunos foram chamados para "irem ao
quadro-negro", resolver uma linda
"conta" proposta pela mestra Joana: 987654321 divididos por
123456789!!!!
Se agora eu
fosse tentar resolver essa operação, sem uso de calculadora, teria dificuldade,
eu creio, não tentei...
Não sei qual a
utilidade desse cálculo. Provavelmente colocar à prova a sanidade das crianças,
seu grau de submissão, sua capacidade de avaliação de uma situação escolar
injusta, sem embasamento pedagógico.
No meu pequeno
entendimento na época, já podia perceber o quanto havia de despotismo na ação
da professora.
Quando a minha
vez chegou de ir ao bendito "quadro" para tentar resolver o cálculo,
os cantos da sala já estavam cheios de alunos que "não souberam"
resolvê-lo e, como consequência lá estavam no canto "como castigo"!
Anunciou, a
professora, que eu me encaminhasse ao quadro, com sua voz forte e convincente!
Meu estômago, já
em pânico há algum tempo, enrolou-se todo. Meus intestinos deram sinal de que
iam funcionar!
Aguentei a
revolução interna e me encaminhei para a tentativa, já sabia, frustrada, de
resolução do cálculo! Na minha cabeça cantava, como se fosse uma canção: nove
vezes nove oitenta e um! Era o que eu conseguia me lembrar! Como, então,
resolver aquele cálculo?
Percebendo que
eu também não conseguia, a professora anunciou que eu me dirigisse para o
"canto"!
Senti toda a
injustiça de que estava sendo objeto! Uma força interna irreprimível me fez
falar!
Anunciei à professora
que "eu não iria para o canto porque aquilo era uma atitude errada e
injusta comigo e com todos os alunos!"
Cena seguinte,
sou expulsa da sala e da escola!
Enxergo-me,
ainda agora, a descer as escadas sozinha, enquanto a professora me acompanhava
com o olhar fulminante.
As lágrimas,
abundantes, escorriam pela face, enquanto eu pensava o que ia fazer.
Acontece que eu
não ia sozinha à escola. Ia com meu irmão e irmã, mais velhos que eu. O irmão
mais moço ainda não frequentava a escola. Naquele momento, meu irmão e minha
irmã estavam em suas respectivas salas. Nada sabiam...
Ao chegar à rua,
enfrentei a chuva, que se misturou às lágrimas, enquanto decidia o que fazer...
Lembrei-me,
então, que meu pai trabalhava a algumas quadras dali.
Embora o trânsito,
naquele tempo, ainda não fosse intenso, as ruas que eu precisei atravessar eram
de grande movimento sempre.
Eu chorava,
quando entrei na loja em que meu pai trabalhava. Ele se assustou ao me ver,
porque, em nenhum instante, pensara me
ver entrar ali, sozinha, chorando, expulsa da escola pela professora!
No momento
seguinte, ele me conduzia de volta à escola.
Ao chegar à sala
de aula, abriu a porta, conduziu-me ao famoso "canto". Disse à
professora que falaria com ela à tarde, junto com minha mãe e a diretora da
escola.
Lá fui eu,
reconduzida ao injusto castigo.
Naquela tarde,
intensas foram as conversações a esse respeito na escola.
Hoje penso que a
professora teve sorte com o modo firme, seguro, mas amistoso, como meus pais
gerenciaram a questão.
Não sei se a
professora entendeu o quanto havia sido injusta, severa demais, evidenciando
nenhum preparo para o exercício da tarefa educacional.
O ano letivo,
depois do conturbado episódio, transcorreu com ainda mais ajuda em casa, muitas
conversas sobre o ocorrido, mas nenhum incentivo à minha atitude rebelde.
Sentia eu, no
entanto, que, embora meus pais não me apoiassem diretamente, me orientavam de
longe e devagar.
Penso hoje que
foi graças ao apoio que tive em casa que não passei a detestar o estudo. Ao
contrário, meu entusiasmo pelo saber continuou crescendo sempre.
Todavia, a cada
situação de estresse escolar, meus intestinos se rebelavam prontamente...
No ano seguinte,
acredito, fui recompensada pela presença de uma professora afetuosa, gentil,
receptiva e doce. Quando lembro da professora Vera Maria Menna Barreto,
professora da terceira série, sinto profunda saudade e gratidão.
Nas manhãs de
frio, costumávamos, as alunas, caminhar em direção à sala de aula de braços com
a professora. A cada dia, nos revezávamos em tão agradável tarefa.
Tão fofinha em
seu casaco de pele (nada politicamente correto nos dias de hoje...). Alta,
olhos claros, atitudes delicadas, embora severas, quando necessário, para que
não passássemos do limite, o que não fazíamos, porque ela nos despertava profundo respeito e
admiração.
Os anos que se
seguiram foram muito importantes para um bom aprendizado escolar. Isso me levou
ao ingresso no Colégio Estadual de Bagé, referência de ensino de qualidade na
época e ainda hoje, através de Exame de Admissão ao Ginásio, uma prova
disputadíssima, no final do ano de 1959.
Alí eu estudaria
pelos próximos sete anos, fazendo o Ginásio de 1960 a 1963. O Científico de
1964 a 1966. No ano de 1967, ingressava na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Bagé para o meu primeiro curso de nível superior.
Ao longo da
vida, tenho agido sempre conforme o fundamento que me foi entregue em
concepção, eu acredito. Acrescido do aprendizado familiar, vivencial, tornei-me
um ser humano de esperança, de sinceridade, de crença, de fé...Valores
imprescindíveis para um viver de verdade!
Muitas as lições
aprendidas ao longo do caminho, desde as primeiras impressas em folhas de
papel, passando por todas as demais de vivência e convivência, às vezes fáceis,
noutras nem tanto, mas todas gravadas indelevelmente na mente, na memória, no
coração, fazendo e fundamentando a vida.
Todas aprendidas
como Minhas Lições!
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