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Banalidade no trânsito pode desencadear brutalidade |
A crueza alegórica do cotidiano voraz (*)
Por Carlos Cogoy (**)
Após jejum de
filmes razoáveis, uma bela obra em exibição no Shopping Pelotas. Em duas horas,
seis relatos que espiam o abismo. Cada episódio uma sentença. Reunidos,
chegaram com fôlego à indicação para o Oscar de filme estrangeiro. “Relatos selvagens”
não levou a estatueta. O que pouco importa, considerando-se que “Selma” –
aborda a questão negra nos EUA -, também não venceu como melhor filme. Enquanto
o Oscar prossegue “selvagem”, contundentes e lúcidos relatos aguçam a
sensibilidade e inteligência. Com direção do talentoso Damián Szifrón, “Relatos
selvagens” também remete a inescapável comparação com a produção
cinematográfica no País que “Lava Jato”. Nem tudo é ruim, mas tem sido
frequentes as idiotices cujos elencos, para atrair bilheteria, escalam celebridades das novelas de tevê.
SEIS episódios
à procura de uma razão. No filme argentino, surpresas perante tramas
inusitadas, apreensão com desfechos imprevistos, riso diante da ficção que
espelha o cotidiano. Em cada história, atores transitam sobre o abismo que
separa razão e loucura. Na abertura, voo emblemático. No avião, poucos minutos
são suficientes para inquietar. E a “turbulência” é tão intensa que sacode,
além dos passageiros, também os espectadores na sala de cinema. Afinal, o que
se insinua como o trivial início de viagem corriqueira, gradativamente vai se
desdobrando num percurso rumo a destino tragicômico. Na bagagem, a bomba não é
artefato explosivo, mas também possui elevada capacidade de destruição.
Trata-se de viagem aos traumas do passado. E alegoricamente um psiquiatra está
na aeronave. O pouso não será acidental.
COLESTEROL da
porção de batatas fritas, como causa para a morte de mafioso. Num café à beira
de rodovia, o cliente é atendido por garçonete. Ela o identifica e recorda
momento doloroso. A cozinheira do lugar ouve o desabafo da colega. Num dos
momentos mais hilariantes, surge a dúvida se o “veneno para rato”, com validade
vencida, torna-se mais eficaz ou menos nocivo. Ex-presidiária, a cozinheira
afirma que “na prisão era mais livre do que essa merda toda”. Com a chegada de
adolescente, filho do cliente, Fanta sobre a mesa.
PNEU furado
pode ser fatal. Numa rodovia, Audi tripulado por “bon vivant”. À frente,
arrastando-se sobrecarregado, carro popular bem rodado. A estrada é o abismo
entre dois mundos e realidades sociais antagônicas. O episódio é caricatura que
transcende o vulgar litígio no trânsito. Trata-se de relato sobre o cotidiano
voraz, sem inocência ou ingenuidade, tanto do endinheirado quanto do espoliado.
A crueza acelera e o fim da viagem tem conotação que ridiculariza as pretensas
diferenças. Todos rodam no mesmo chão.
SISTEMA explora. Numa teia burocrática com filas, guichês e funcionários treinados
na “lógica binária” - sim e não -,
armadilhas estão à espreita. As “minas” explodem no bolso do contribuinte. E
podem estar armadas em banalidades como o simples estacionamento do veículo. O
meio-fio não estava “marcado”, mas o carro foi guinchado. A vítima é o
engenheiro interpretado pelo ator Ricardo Darín. Especialista em explosivos,
ele desafia o sistema.
FILME tem
ainda dois episódios excelentes. No penúltimo, jovem de classe média alta
atropela e mata gestante. O que sucede, em interpretações magistrais, é uma
ciranda de venalidades, corrupção e propina. Na festa de casamento, relato que
encerra a obra, ciúme gera comemoração surrealista. Aos convidados, ódio,
rancor, ironia, cobiça, medo e ternura.
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(*) Produção argentina, “Relatos
Selvagens”, está em exibição na sala 5 do Cineflix no Shopping Pelotas
(**) Carlos Cogoy é Jornalista e Professor de Filosofia
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