3 de julho de 2021

O guarda-chuva da Lica

                                                                                                                  Foto Luiz Calos Vaz
 


 Luiz Carlos Vaz (*)

Era um dezembro, já quase Natal, quando uma programação de reinauguração de obras de restauração na Biblioteca Pública, num projeto da Ato Produção Cultural, juntou um enorme público – que não caberia no auditório da Casa, na rua, junto à Praça, para assistir a uma apresentação artística através das enormes janelas no segundo andar do prédio centenário... muitos levaram, inclusive, as práticas cadeiras de praia, e outros sentaram-se comodamente ali mesmo na rua, ou no meio fio da calçada, para ver os músicos, os cantores e outros artistas que iriam realizar suas apresentações.

O Arthur era pequeno, tinha pouco mais de dois anos, e certamente ainda recordava dos acordes do Bolero de Ravel que sua mãe ouvia para relaxar quando o carregava ainda no ventre... A noite prometia muita emoção e alegria por ver a casa, fundada em 1875 por Antônio Joaquim Dias, reformada – sem ter sido necessário ser temporariamente fechada ao público, totalmente à disposição de todos os estudantes, pesquisadores e leitores.

Mas... Pelotas sempre tem suas surpresas. Sem que se percebesse, pois era início do Verão, o céu noturno foi sendo encoberto e iniciou uma leve chuvinha. A princípio reconfortante, para espantar o calor. Mas aos poucos ela foi aumentando. Os músicos e demais artistas, resguardados dentro da Casa, continuaram o espetáculo. E o público, em princípio, não arredava pé.

Recordo ainda da soprano Renata Gomes, como Violette, cantando o Duo Brindise, da Traviata, junto com o tenor Giovani Tristati:

Com vocês eu saberei dividir

Esse tempo de alegria

Tudo é loucura no mundo

Quando não há prazer

Aproveitemos, pois fugaz e rápida

É a alegria do amor

É uma flor que nasce e morre

Sem que se possa controlar

Aproveitemos pois uma sedutora voz

Se revela a nos alegrar

 

  E a chuvinha de verão foi apertando...

 De repente, naquela penumbra noturna, um braço feminino surgiu e ofereceu um guarda-chuva para a Maribel que tentava, de todos os modos, abrigar o filho da chuva.

Era o braço da Lica. Era o guarda-chuva da previdente Lica. Era o braço de uma Mãe, acudindo outra Mãe, que fazia de tudo para proteger o seu filho.

A partir dali, sob a proteção do guarda-chuva da Lica, foi mais confortável se encantar, outra vez, com a voz da Renata que, para o deleite dos meus ouvidos, cantava agora a ária O Mio Babbino Caro, de Puccini, da ópera Gianni Schichi:

 

Ó meu querido paizinho

Amo-te, és tão belo

Quero ir até Porta Vermelha

Para comprar um anel!

Sim, sim, quero ir!

E, se meu amor for em vão,

Irei até Ponte Velha

E me jogarei no rio Arno!

Caio em prantos e sofro tormentas!

Oh, Deus, preferiria morrer!

Paizinho, tende piedade, tende piedade!

 

A água que correu no meio fio não chegou nem perto da força e profundidade do rio Arno; mas o guarda-chuva da Lica nos deu, sim, aquela noite, o abrigo necessário para a água que, caindo do céu, num dia lá muito distante, quem sabe, também já tivesse corrido pelo rio Arno...

Certamente a Lica não se lembra disso, é claro. Mas para nós, aquele gesto será recordado sempre como o gesto de uma Mãe que faz tudo para proteger um filho; mesmo que não seja o seu próprio filho! Eu nem sei exatamente como é o “nome da Lica”, sou apenas amigo do pai dos filhos dela, e sempre o ouço tratá-la assim, delicadamente, pelo apelido familiar.

Mas sei que ela é Mãe, e já deu provas do que é capaz para proteger um filho. Mesmo que não seja um dos seus!

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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

3 comentários:

Hamilton Caio Vaz disse...

Muito lindo !
Emociona !
Parabéns pelo texto, que pretendeu ser simples, e foi profundo !
A gratidão sempre nos marca profundo. A autora, certamente por ser muito elevada, e o fez por obrigação natural, até deve ter esquecido, deve ser parte do seu espírito de auxiliar, sempre, que está ao seu lado.
Continue na sua trajetória, Lica !

Hamilton Caio Vaz disse...

Que falta está fazendo a música clássica, e o canto lírico, na praça !
Vade retro, pandemia !

Hamilton Caio Vaz disse...

Muito lindo !
Emociona !
Parabéns pelo texto, que pretendeu ser simples, e foi profundo !
A gratidão sempre nos marca indelével.  A autora do gesto, certamente por ser muito elevada, e o fez por obrigação natural, até deve ter esquecido, por fazer parte do seu espírito de auxiliar, sempre, quem está ao seu lado. Continue na sua trajetória, Lica !