AG Schlee, em Montevideo, frente a La Popoñita,
lugar de encontros com Benedetti. Foto L.C.Vaz
Tradutor
de Mario Benedetti (14-12-1920/15-07-2009), o escritor Aldyr Garcia Schlee se despede emocionado do seu
velho e querido amigo uruguaio. (*)
Morreu
domingo, enquanto dormia, um dos últimos viúvos de Margaret Sullavan. A notícia
de sua morte esperada, ainda assim, despedaça-nos, rasga-nos por dentro como a
própria morte de Margareth Sullavan terá feito com ele.
Era
um pequenino homem de bigode branco, ronronando sua asma brônquica entre um
pigarro e outro, sempre discreto, austero e calado em seu canto, com os
olhinhos úmidos e muito sugestivamente brilhantes. Quando eu nasci, ele tinha
já 14 anos e estava deixando os estudos para trabalhar; só fui conhecê-lo
pessoalmente quando principiava a ser admirado, reconhecido e venerado em seu
país, onde fora vítima da intolerância, da injustiça, da censura e da
perseguição política impostas pela ditadura militar que infelicitara o Uruguai
a partir de 1973.
Mario
Benedetti contava que em janeiro de 1960, estando com a esposa em Nova York e
pretendendo ver num teatro do Village a peça Nossa Cidade, de Thornton Wilder,
soube do porteiro que os ingressos estavam esgotados. “A esta hora o senhor
pretende ingressos? Em que mundo vive?”, ¬ perguntou-lhe o porteiro. Mario, com
seu bigode e sua modéstia, sentiu-se como o provinciano que era realmente,
incapaz de enfrentar então ao menos uma escada rolante... Foi quando tilintou o
telefone, ali no saguão do teatro. O porteiro atendeu em silêncio, logo se
transfigurou; e disse quase soluçando: não! não pode ser, não pode ser!
Mario
Benedetti, solidário sempre e em todas as circunstâncias, aproximou-se,
tocou-lhe brevemente o braço, perguntou-lhe o que acontecia, se havia recebido
alguma má notícia, se podia ajudar... Então o rapaz se voltou para ele e disse
como se despertasse de um pesadelo:
-
Morreu Margaret Sullavan!
-
No, no puede ser - disse Benedetti para si mesmo e para ninguém mais, com o
assombro e a tristeza de quem tomava consciência de que naquele instante
desaparecia o último vestígio de sua já distante adolescência. E ele percebia
que pela primeira vez em sua vida havia perdido um ente querido.
Ao
justificar sua paixão por Margaret Sullavan, Benedetti reconhecia com a
simplicidade de quem está trilhando o óbvio, que uma atriz de cinema não é
exatamente uma mulher, é antes uma imagem. Como muitos de nós, reconhecia ele
que havia se apaixonado pela imagem de Margaret Sullavan na adolescência,
quando uma paixão dessas se torna definitiva. Fora a imagem daquela atriz que pela
primeira vez habitara a sua e a nossa insônia e nos cortara a respiração,
significando nosso primeiro ensaio de emoção, nosso primeiro arremedo de amor.
Quando
procurei Mario Benedetti pela primeira vez, e precisava encontrá-lo para que me
permitisse traduzir seu conto Sábado de Glória, ele estava na Espanha. Depois,
quando finalmente nos encontramos, fiquei tão perturbado diante daquele
homenzinho e de sua descomunal estatura moral, cívica e literária, que esqueci
o nome do conto, o título do livro correspondente, tudo, e só me lembrei de
Margaret Sullavan - a inesquecível atriz de cinema que me encantara, que
encantara o escritor e que encantava ainda e também o infeliz narrador da
tragédia familiar contada por Benedetti - que minha mulher lera chorando e que
eu, chorando, traduzira para o português.
Em
torno de Margareth Sullavan estivemos uma vez sentados numa mesa de La
Popponita, onde se falava de cinema e quando não me animei a confessar-lhe que
20 anos antes costumava ler e tentara colecionar suas crônicas publicadas em La
Mañana. Benedetti não dizia nada, não precisava dizer nada, admitindo e
aprovando divertidamente com seu sorriso ladeado nosso
entusiasmo com o cinema e nossas lembranças de filmes, atores e atrizes. A
partir de Margareth Sullavan, nós nos perguntávamos sobre Gene Tierney, Ava
Gardner e Rita Hayworth, sobre os melhores anos de nossas vidas, sobre tempos
modernos, sobre a bela e a besta... De repente, eu me dei conta de que - posta
a câmara em Mario Benedetti, como numa tomada cinematográfica - tudo o mais era
acessório, era dispersão. E me calei. Não havia mais o que dizer.
Benedetti
havia dosado com a emoção e o amor despertados pela imagem de Margaret Sullavan
todo o conteúdo poético de sua prosa ficcional, feita da retomada e da
recuperação dos grandes dramas e das pequenas tragédias do cotidiano urbano
uruguaio. Embora fosse, por isso mesmo, um poeta, seus versos duros,
reiterativos e panfletários, pouco deixavam transparecer a poesia, submetidos
geralmente à clara proposição política e ideológica que os fazia inseparáveis
das lutas sociais em que ele esteve envolvido.
Uma
vez estivemos juntos numa mesa de debates, na Biblioteca Nacional; outra, na
Intendência Municipal de Montevidéu. Em ambas as ocasiões, senti-me oprimido e
deprimido, vendo que Mario Benedetti não estava à vontade: ele como que já não
tinha o que dizer, já estava cansado; estava cansado de repetir o que esperavam
que dissesse, já estava cansado de ouvir o que sempre diziam dele.
Fora
um combatente das letras. Fora o primeiro e era o último sobrevivente da
geração crítica de 1945 - que tivera a coragem de denunciar o pedantismo, a
frivolidade, a hipocrisia e o conformismo dos cultores da “belas letras” no
Uruguai desde o propalado reconhecimento do país como “a Suíça americana”. Ele
voltara para Montevidéu os olhos do leitor uruguaio - habituado até então à
nostalgia campeira de uma literatura “criolla” - e reconstruíra a partir da
capital a sua urbanidade, ajudando a recompor e reafirmar a identidade uruguaia
como a de um país montevideano.
Fora
mais do que um combatente das letras. Fora um militante da justiça social e da
dignidade humana, um defensor da vida e da alegria. Enfrentara a ditadura como
um dos fundadores do Movimento 26 de Março, braço legal do Movimento de
Libertação Nacional Tupamaros. Precisara exilar-se na Argentina para não
sucumbir à fúria militar em seu próprio país; precisara fugir para o Peru a fim
de escapar com vida da AAA, a Ação Anticomunista Argentina...
Fora
o intérprete dos anseios, das contradições e das perplexidades dos escritores
latino-americanos; fora galardoado com prêmios, títulos, insígnias
internacionais, antes que lhe reconhecessem os méritos no próprio Uruguai -
onde só em 2005 lhe deram o título de Doutor Honoris Causa da Universidade da
República.
Certamente
estava cansado de tudo isso.
Sempre
fora um homem pequeno e modesto, com seu eterno bigode (e até cultivara um
certo topete na testa cada vez mais ampla e alta). Sempre vivera dos sonhos e
das emoções que alimentaram sua escritura da mesma forma como a confiança e a
esperança que tinha em um mundo melhor, mais justo e mais feliz.
Era
casado com uma extraordinária mulher chamada Luz Alegre, cujo nome bastava para
justificar o quanto dela ele dependia como companheira e orientadora. E tinha
ele mesmo um paradoxal e estranho nome quilométrico, só comparável à variedade
e à quantidade de sua imorredoura obra literária: Mario Orlando Hamlet Hardy
Brenno Benedetti Forugia.
A
morte é definitivamente o fim. Mas, como se fora o começo de tudo, Mario
Benedetti terminou velado na Sala dos Passos Perdidos do Palácio Legislativo
Uruguaio; e enterrado no Panteão Nacional do Cemitério Central de Montevidéu.
Agora,
o que adianta?
Fica
o eco de nosso desconsolo e de nossa incredulidade ante a notícia de sua morte.
¡No,
no puede ser!
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© Aldyr Garcia
Schlee - Escritor e tradutor (22-11-1934/15-11-2018)
Publicado no
jornal Zero Hora, em 23 de maio de 2009