31 de maio de 2025

A (minha) Vida (também) é Bela

 

Foto @jornalistavaz


Márcia Duarte


Se eu olhar para minha vida, diria que no passado era difícil pensar em um futuro melhor.

Muito do que sou hoje foi conquistado a duras penas.

Eu me libertei. E isso, por si só, é algo digno de celebração, pois quantas pessoas desejariam ser livres? Quantas não conseguem enxergar uma vida melhor por não terem condições de se manter? Quantas ainda estão aprisionadas no medo, na insegurança e na desesperança?

São sentimentos que conheço muito bem.

Acho que estou bem apesar da árdua batalha pela qual tenho passado.

É difícil abrir mão de sonhos que não se concretizaram.

É difícil pensar que tanto potencial está aprisionado num lugar onde não existe a menor identificação profissional.

E é difícil entender que eu não escuto. Mais difícil ainda é explicar para as pessoas que não sou obrigada, automaticamente, a saber a língua de sinais porque minha língua é o português.

Eu não entendia até dizer para alguém: "esse foi o maior absurdo que já OUVI".

A ficha caiu e eu percebi que meu cérebro funciona como o de um ouvinte, mas meus ouvidos não.

Vejam: eu não estou reclamando da vida. Ela é bela, há pessoas incríveis no meu mundo, pessoas com as quais me identifico e respeito.

Estou apenas dizendo que um lado meu está infeliz e quer, desesperadamente, encontrar um caminho para seguir adiante e ter todo o potencial expresso e utilizado em algo satisfatório.

Quero me sentir realizada. Plenamente capaz de estar neste vasto mundo.

Tenho me questionado incessantemente, tenho procurado as respostas e ainda não as encontrei.

E isso, meus caros, é uma jornada silenciosa e barulhenta ao mesmo tempo.

Se tenho silêncio do mundo externo, por outro lado, meus barulhos são tão intensos quanto as ondas do mar nas pedras dos molhes da barra* em um dia de tempestade.

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(*) Molhes da barra da Praia do Cassino.

Foto tirada por @jornalistavaz no Mercado Público de Pelotas.

Márcia Duarte, 52 anos, pedagoga, leitora voraz e escritora nas horas vagas.
Pós-Graduada em Leitura e Produção textual pela UFPel, publicou o texto Uma Menina querendo ser jornalista no livro Algumas muitas ideias sobre alfabetização literária, organizado pela professora Cristina Maria Rosa, em 2024.

17 de maio de 2025

¡No, no puede ser!

AG Schlee, em Montevideo, frente a La Popoñita,
lugar de encontros com Benedetti. Foto L.C.Vaz


Tradutor de Mario Benedetti (14-12-1920/15-07-2009), o escritor Aldyr Garcia Schlee se despede emocionado do seu velho e querido amigo uruguaio. (*)


 Morreu domingo, enquanto dormia, um dos últimos viúvos de Margaret Sullavan. A notícia de sua morte esperada, ainda assim, despedaça-nos, rasga-nos por dentro como a própria morte de Margareth Sullavan terá feito com ele.

 Era um pequenino homem de bigode branco, ronronando sua asma brônquica entre um pigarro e outro, sempre discreto, austero e calado em seu canto, com os olhinhos úmidos e muito sugestivamente brilhantes. Quando eu nasci, ele tinha já 14 anos e estava deixando os estudos para trabalhar; só fui conhecê-lo pessoalmente quando principiava a ser admirado, reconhecido e venerado em seu país, onde fora vítima da intolerância, da injustiça, da censura e da perseguição política impostas pela ditadura militar que infelicitara o Uruguai a partir de 1973.

 Mario Benedetti contava que em janeiro de 1960, estando com a esposa em Nova York e pretendendo ver num teatro do Village a peça Nossa Cidade, de Thornton Wilder, soube do porteiro que os ingressos estavam esgotados. “A esta hora o senhor pretende ingressos? Em que mundo vive?”, ¬ perguntou-lhe o porteiro. Mario, com seu bigode e sua modéstia, sentiu-se como o provinciano que era realmente, incapaz de enfrentar então ao menos uma escada rolante... Foi quando tilintou o telefone, ali no saguão do teatro. O porteiro atendeu em silêncio, logo se transfigurou; e disse quase soluçando: não! não pode ser, não pode ser!

 Mario Benedetti, solidário sempre e em todas as circunstâncias, aproximou-se, tocou-lhe brevemente o braço, perguntou-lhe o que acontecia, se havia recebido alguma má notícia, se podia ajudar... Então o rapaz se voltou para ele e disse como se despertasse de um pesadelo:

 - Morreu Margaret Sullavan!

 - No, no puede ser - disse Benedetti para si mesmo e para ninguém mais, com o assombro e a tristeza de quem tomava consciência de que naquele instante desaparecia o último vestígio de sua já distante adolescência. E ele percebia que pela primeira vez em sua vida havia perdido um ente querido.

Ao justificar sua paixão por Margaret Sullavan, Benedetti reconhecia com a simplicidade de quem está trilhando o óbvio, que uma atriz de cinema não é exatamente uma mulher, é antes uma imagem. Como muitos de nós, reconhecia ele que havia se apaixonado pela imagem de Margaret Sullavan na adolescência, quando uma paixão dessas se torna definitiva. Fora a imagem daquela atriz que pela primeira vez habitara a sua e a nossa insônia e nos cortara a respiração, significando nosso primeiro ensaio de emoção, nosso primeiro arremedo de amor.

 Quando procurei Mario Benedetti pela primeira vez, e precisava encontrá-lo para que me permitisse traduzir seu conto Sábado de Glória, ele estava na Espanha. Depois, quando finalmente nos encontramos, fiquei tão perturbado diante daquele homenzinho e de sua descomunal estatura moral, cívica e literária, que esqueci o nome do conto, o título do livro correspondente, tudo, e só me lembrei de Margaret Sullavan - a inesquecível atriz de cinema que me encantara, que encantara o escritor e que encantava ainda e também o infeliz narrador da tragédia familiar contada por Benedetti - que minha mulher lera chorando e que eu, chorando, traduzira para o português.

Em torno de Margareth Sullavan estivemos uma vez sentados numa mesa de La Popponita, onde se falava de cinema e quando não me animei a confessar-lhe que 20 anos antes costumava ler e tentara colecionar suas crônicas publicadas em La Mañana. Benedetti não dizia nada, não precisava dizer nada, admitindo e aprovando divertidamente com seu sorriso ladeado nosso entusiasmo com o cinema e nossas lembranças de filmes, atores e atrizes. A partir de Margareth Sullavan, nós nos perguntávamos sobre Gene Tierney, Ava Gardner e Rita Hayworth, sobre os melhores anos de nossas vidas, sobre tempos modernos, sobre a bela e a besta... De repente, eu me dei conta de que - posta a câmara em Mario Benedetti, como numa tomada cinematográfica - tudo o mais era acessório, era dispersão. E me calei. Não havia mais o que dizer.

Benedetti havia dosado com a emoção e o amor despertados pela imagem de Margaret Sullavan todo o conteúdo poético de sua prosa ficcional, feita da retomada e da recuperação dos grandes dramas e das pequenas tragédias do cotidiano urbano uruguaio. Embora fosse, por isso mesmo, um poeta, seus versos duros, reiterativos e panfletários, pouco deixavam transparecer a poesia, submetidos geralmente à clara proposição política e ideológica que os fazia inseparáveis das lutas sociais em que ele esteve envolvido.

 Uma vez estivemos juntos numa mesa de debates, na Biblioteca Nacional; outra, na Intendência Municipal de Montevidéu. Em ambas as ocasiões, senti-me oprimido e deprimido, vendo que Mario Benedetti não estava à vontade: ele como que já não tinha o que dizer, já estava cansado; estava cansado de repetir o que esperavam que dissesse, já estava cansado de ouvir o que sempre diziam dele.

 Fora um combatente das letras. Fora o primeiro e era o último sobrevivente da geração crítica de 1945 - que tivera a coragem de denunciar o pedantismo, a frivolidade, a hipocrisia e o conformismo dos cultores da “belas letras” no Uruguai desde o propalado reconhecimento do país como “a Suíça americana”. Ele voltara para Montevidéu os olhos do leitor uruguaio - habituado até então à nostalgia campeira de uma literatura “criolla” - e reconstruíra a partir da capital a sua urbanidade, ajudando a recompor e reafirmar a identidade uruguaia como a de um país montevideano.

 Fora mais do que um combatente das letras. Fora um militante da justiça social e da dignidade humana, um defensor da vida e da alegria. Enfrentara a ditadura como um dos fundadores do Movimento 26 de Março, braço legal do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros. Precisara exilar-se na Argentina para não sucumbir à fúria militar em seu próprio país; precisara fugir para o Peru a fim de escapar com vida da AAA, a Ação Anticomunista Argentina...

Fora o intérprete dos anseios, das contradições e das perplexidades dos escritores latino-americanos; fora galardoado com prêmios, títulos, insígnias internacionais, antes que lhe reconhecessem os méritos no próprio Uruguai - onde só em 2005 lhe deram o título de Doutor Honoris Causa da Universidade da República.

Certamente estava cansado de tudo isso.

 Sempre fora um homem pequeno e modesto, com seu eterno bigode (e até cultivara um certo topete na testa cada vez mais ampla e alta). Sempre vivera dos sonhos e das emoções que alimentaram sua escritura da mesma forma como a confiança e a esperança que tinha em um mundo melhor, mais justo e mais feliz.

 Era casado com uma extraordinária mulher chamada Luz Alegre, cujo nome bastava para justificar o quanto dela ele dependia como companheira e orientadora. E tinha ele mesmo um paradoxal e estranho nome quilométrico, só comparável à variedade e à quantidade de sua imorredoura obra literária: Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti Forugia.

 A morte é definitivamente o fim. Mas, como se fora o começo de tudo, Mario Benedetti terminou velado na Sala dos Passos Perdidos do Palácio Legislativo Uruguaio; e enterrado no Panteão Nacional do Cemitério Central de Montevidéu.

 Agora, o que adianta?

 Fica o eco de nosso desconsolo e de nossa incredulidade ante a notícia de sua morte.

¡No, no puede ser!

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© Aldyr Garcia Schlee - Escritor e tradutor (22-11-1934/15-11-2018)

          Publicado no jornal Zero Hora, em 23 de maio de 2009


7 de maio de 2025

Aldir, Aldyr


 


André Costantin (*)

Quando eu passo por um terreno de terra crua, grama ou simples capim (desde que seja um interstício mais ou menos plano no grave relevo da cidade), dois extremos atravessam o meu sentimento: a infância livre jogada nas várzeas da Vila Kaiser e o adulto cansado que venho arrastando desde a trágica epifania do 7x1, de Alemanha e Brasil, na copa de 2014.

Em campo, o desastre prenunciatório deu-se justo quando as multidões passaram a vestir a camisa dita “canarinho” como símbolo de um sonhado país sem corrupção e talvez mais justo. Num lance muito rápido, a camisa amarela foi sequestrada por entes políticos e outros vírus que habitavam os intestinos da nação e que enxergaram, naquele estremecimento do grande corpo, a chance de vir à luz – pelas bocas e telas dos smartphones.

Hoje, presos no labirinto das nossas entranhas sociais, vemos com os olhos tontos daquele 7x1 sem fim os pequenos exércitos de zumbis marchando em camisas amarelas da seleção brasileira, em nome de nem sabem o que, de quem ou porquê. Bradam por um Brasil livre, pela ditadura militar. Será demência? Tempo atrás pedi uma cerveja e me ofereceram uma artesanal, de nome “7x1”, com rótulo e tudo. Sim, somos loucos e sádicos.

Nossa arte do futebol suspirou até lá pela copa de 1982. Tudo virou empresa, negócio. Os capins da cidade estão vagos. No condomínio da minha filha há um campinho com goleiras e tela de proteção, vazio – um sonho daqueles guris do Kaiser que jogavam num terreno inclinado a 25% ou mais. Os garotos, homens feitos, foram lobotomizados pelos games em quartos escuros, entre armas e tiros. E segue o jogo. Demos nisso.

Muitos já leram e definiram traços da nossa complexa (ou extinta) brasilidade pela cultura do futebol. Entre eles, dois mestres escritores e artistas cujos nomes agora se casam em transparência de luz: Aldyr Schlee (1934-2018) – o revelador do Pampa, ao sul da nossa identidade; e o recém-encantado Aldir Blanc (1946-2020) – intérprete do Rio de Janeiro, coração do Brasil.

Criador da mística camisa amarela, Aldyr Schlee sentia profunda tristeza pelo destino de sua obra mais popular. Agora, vai-se Aldir Blanc. No seu vasto testamento, nos deixa o “Tá lá o corpo estendido no chão; em vez de rosto a foto de um gol” – De frente pro crime.

Aldyr, Aldir. Dois lutos que flecham os corações de “nós-outros” brasileiros – melancólicos são-sebastiões de osso e carne que somos, crivados pelos espíritos do futebol e do samba. E algo além. O mais da nação são gritos de ordem.

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(*) publicado no jornal O Pioneiro em maio de 2020