16 de março de 2010

A Luta do Século

Eu queria ver as gotas de suor de Joe Frazier respingarem na platéia...

A televisão chegou a Bagé por esforço pessoal do Sr Araceli dos Santos Menezes, da Casa Eletromáquinas. Em uma parceria com o fabricante dos televisores Empire, foi instalada em nossa cidade uma pequena retransmissora que “baldeava”, via Pinheiro Machado, o sinal da TV Tuiuti de Pelotas, que por sua vez, recebia, via Camaquã, o sinal da TV Gaúcha, Canal 12, de Porto Alegre. Ufa! que cansaço. Mas era só o tempo “se armar” e lá se iam os capítulos dos Irmãos Coragem, os episódios de O Fugitivo e as lutas do Ringue 12 Liquigás. Que luta! Mas, mesmo assim, vimos em 1969 o homem chegar na Lua (minha avó dizia que eles nem saíram daqui...), a Copa de 70 no México, os festivais da Canção da Record e cantamos junto com Malcon Roberts, no FIC, da recém criada TV Globo, Love is all... Tudo “ao vivo e... em preto e branco”, com um magnífico “chuvisco” na imagem e um som chiado que era terrível. Mas era a televisão que chegava para ficar e as conversas no recreio do Estadual já não versavam apenas sobre futebol, namoro e cinema. A televisão já era assunto também. Foi nessa época que tivemos a transmissão da Luta do Século. Cassius Clay versus Joe Frazier. A luta entre dois boxeadores que nunca haviam perdido uma luta. Valia pela Associação Mundial de Boxe e pelo Conselho Mundial de Boxe. Era a unificação dos títulos. Em 1971, aquele inverno de agosto viera para nos dar um nocaute. Para não beijar a lona nos enrolávamos num xergão de ovelha e a mãe nos servia uma sopa bem quente. O sinal da TV andava muito bom pois haviam criado uma espécie de associação onde os proprietários de aparelhos receptores de televisão contribuíam voluntariamente com uma pequena quantia mensal, através de um carnê, para garantir a manutenção do retransmissor e pagar uma changa para um zelador, que passou a morar num puxadinho lá no alto do Cerro de Bagé. Ele era encarregado de ligar e desligar os equipamentos junto à antena. Era um clic de tarde e um clac de noite, e o zelador, um velho peão de estância, já afastado pela idade das lidas do campo, podia voltar para o seu mate e continuar ouvindo no seu velho rádio algum programa de tangos numa emissora castelhana qualquer. Ele colocava a tv no ar, mas nunca tinha chegado perto de uma. Talvez nem soubesse direito a natureza do seu trabalho. Era um clic de tarde e um clac de noite e... estamos conversados. Nada mais de domar potro xucro, castrar porco, correr eguada... era só um clic de tarde e um clac de noite. Uma barbada. Blééém! O gongo deu início ao primeiro round da Luta do Século. Cassius Clay, de quem haviam retirado as medalhas olímpicas do Boxe por não querer lutar no Viet Nan, e que por isso também havia sido preso, estava agora lá para lutar. Mas ele lutava também pelos direitos civis, não queria que os negros tivessem que continuar sentando nos bancos de trás dos ônibus, não queria ver os jovens negros não poderem cursar uma universidade e não poderem entrar nos lugares onde só os brancos entravam. Eles, os negros americanos, só podiam entrar, junto com os brancos, para o exército. Para morrer, junto com os brancos, no Viet Nan. Isso Cassius Clay não queria ver mais. Queria a paz. Na prisão converteu-se ao islamismo, agora era Mohammad Ali-Haj quem olhava, com olhos de tigre, para Joe Frazier. Era a Luta do Século que começava. E eles estavam ali, frente a frente, e na frente dos meus olhos, com direito a chuvisco e tudo mais. Blém, blém, blém... o gongo batia várias vezes para avisar aos lutadores que o round havia terminado. O árbitro tinha dificuldades em separá-los. Blééém... mais um round. Muhammad Ali ainda não acertou nenhum direto em Frazier e o frio do agosto já está nos deixando grogs... Blém, blém, blém novamente o gongo sinaliza veementemente para os lutadores, agora já o fim do 14º round. Vamos para o último. Tem que ser agora, Frazier não pode derrubar um homem da estatura de Cassius Marcellus Clay Jr, chame-se ele como quer que se chame agora. Chegou a vez do direto de esquerda, ou de direita, não importa, é preciso que Joseph William Frazier se estatele no chão, que suas gotas de suor respinguem até as primeiras filas de cadeiras. Eu agora, já não estou mais enrolado no xergão de ovelha, já pulo trocando os pés como Ali, vai soar o gongo para o último round da Luta do Século..... Blé....
shshshshshshshshshshshshshhshshshshshshshshshshshshshshsh
foi-se a imagem, foi-se o som, foi-se o 15º e último round da Luta do Século.
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O velho peão de estância, que agora zelava pelo nosso retransmissor, olhara o relógio. Era meia-noite em ponto. E ele fez... o clac! Ele fez o clac e foi para a cama dormir o sono dos justos e sonhar com o tempo em que domava potros xucros, castrava porcos e corria eguada.
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Lembro que meu pai, no outro dia ao saber do fato, rasgou o carnê da associação e bradou em alto e bom som:
“Não pago mais essa merda!”
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25 comentários:

Ana Saturnina disse...

Lembro bem do dia em q o homem pisou na lua.Foi poucos dias antes do meu aniversário de 15 anos. Assistimos na TV do vizinho. As imagens vindas da lua não eram tão boas, ainda mais com aquele chuvisqueiro td. Só se viam uns vultos andando. Na minha casa só fomos ter TV uns 2 anos depois. Nessa época eu já estava trabalhando e tinha mt vontade de largar o emprego, só pra ficar assistindo TV. Quase larguei o namorado tb...ele queria namorar e eu queria assistir TV. Anos depois, já morando em Sampa, qdo vi q íam passar essas imagens em um Fantástico, corri para vê-las, agora com imagem consideravelmente melhor.

Ana Saturnina disse...

Corrigindo...poucos dias antes de fazer 16 anos.

Léli disse...

Ótima narrativa!!!! Consegui enxergar um Luizinho trocando os pés na sala de casa. hahaha E um Mohammad Ali-Haj gigante em toda a sua força e mostrando aos afroamericanos que a luta só acaba no último round.
Que saudade deste tempo que não vivi!!! Ainda bem que tem gente que conta com detalhes precisos, lembrados ou inventados, aquelas belas coisas e outras, não tão belas, pelas quais o mundo passou.
Agora... em relação ao homem ter ido a lua, bem... não é só tua avó que dizia que eles não tinham saído daqui, o Aleksander também não acredita na possibilidade. Eu não sei direito, se creio ou não, só sei que as viagens lunares e interplanetares que nos diziam que iriam ocorrer nos anos dois mil não rolaram... Também não ouvi falar em ninguém, além do São Jorge e do dragão, que esteja morando na lua...

Gerson Mendes Corrêa disse...

Rapaz eu lembro dessa luta, e estava bem afim de ve-la, porém meu velho e sábio pai disse não, porque lá em casa era ele que ligava o aparelho de tv às 17:15 para assistirmos o serriado do tarzan com o ator Ron Ely e tambem ele que desligava as 22:00 em ponto, e não tinha aceto para depois das 22hs.

Hamilton Caio disse...

Eram os tempos heróicos da televisão em Bagé. Os detalhes inusitados do nascimento da TV numa bem humorada crônica. A chegada do homem na lua foi a transmissão de tv do século, como já falou a Ana. Uma passagem que não esquecemos foi quando descobrimos, brincando com os ensinamentos de física do Estadual na área de radiotransmissão, que a faixa de FM da nossa "eletrola" recebia o som da televisão. Isso só acontece com o canal 6 de tv, justamente o primeiro de Bagé, porque a banda de áudio desse canal, mais precisamente em 87,8 MHz, aparece no início da faixa de FM de qualquer rádio. E como não tem a faixa de vídeo junto, "para incomodar", o som recebido fica ótimo. Vai daí, imaginemos como seria receber um som em "Hi Fi" em um enorme móvel de madeira, nos shows e nos Festivais da Canção. Para melhorar, ainda usávamos uma antena externa só para a FM do rádio. E "dispensando" o som, podemos ajustar melhor a sintonia do vídeo, melhorando a imagem recebida. Era a imagem na TV e o som na eletrola. Acontece que tínhamos um vizinho de porta que era do tipo "não amigável", sei lá por que motivo, e que também comprou sua "empire" e sempre estava com ela ligada na mesma hora que nós. Ora, quando ele ouvia "aquele som" vindo na nossa porta, ao mesmo tempo que ouvia "aquelas vespas" zoando na frente do seu aparelho, o cara ficava doido. Lembramos de ver ele, através da cortina da nossa janela, sair pela porta até a beira da calçada, dirigir um olhar disfarsado para a nossa porta e entrar de novo na sua sala, "caminhando miudinho", como se dizia de quem estava fulo de raiva. Devido a sua condição de "nariz empinado", não tinha coragem de nos perguntar sobre aquela mágica que fazíamos. Um momento inesquecível do começo da televisão, na nossa casa.

Luiz Carlos Vaz disse...

Ana, essa condição de assistir tv na casa ao lado era chamada de "televizinho", lembra? Foi bom teres lembrado disso. Aliás, parece que a primeira remessa de Empires eram apenas 200 aparelhos... Algumas pessoas já possuiam tv e, às vezes, sintonizavam emissoras do Uruguai.

Luiz Carlos Vaz disse...

Leli, obrigado pelo "Luizinho", hahaha. Hoje sabemos que muitas fotos divulgadas eram feitas em cenários... Mas uma pergunta não quer calar: Por que não foram mais a Lua se a tecnologia é um milhão de vezes mais avançada? Vamos ver se alguém da NASA responde ao Blog, hahaha

Luiz Carlos Vaz disse...

Bah! Gerson, lembraste do Ron Ely, o Ronald Pierce Ely, o Tarzã "sarado" dos anos 60... Que maravilha! É quase impossível imaginar que a programação da tv só iniciava no fim da tarde. E a sabedoria do teu pai só ajudou vocês a não ter a decepção que tivemos antes de iniciar o 15 round...

Manoel Ianzer disse...

Vaz tudo está voltando a nossa memória. Lembrei que estava passando férias em Canoas(na casa da tia Nilda), quando a televisão chegou a Capital Gaúcha. Foi um grande reboliço. Fomos assistir o início da transmissão no vizinho. Foi espetacular.
Já estava no fundo do arquivo da memória, quase esquecido. Por isso, o seu(nosso) blog, está cada vez melhor.

Luiz Carlos Vaz disse...

Vê só Ianzer, mais um caso de "televizinho", a Ana também já comentou que via tv na casa ao lado da sua. E, tens razão, o Blog é nosso!

Claudete disse...

Eu também assisti à chegada à Lua na "televizinha". Lembro muito bem! A vizinha era a Glodete, que hoje mora aqui em Pelotas e nos reencontramos e somos amigas no Orkut. (olha só que volta!!)
Também costumava "televizinhar" para assistir ao Ringue 12 Liquigás ("à nossa direita, lutador de tantos quilos, Fantomas, O Vingador Mascarado, e à nossa esquerda o lutador de tantos quilos Ted Boy Marino" (anunciados com toda a pompa pelo Éldio Macedo). Tinha também o Scaramouche, Verdugo e Múmia!!!! A Copa de 70 assisti no bar da esquina (da família Muza)pq era onde tinha tv colorida, porque antes, colorida, só se tivesse aquele plástico "degradée" sobre a tela! Puxa vida, essas nossas recordações estão com cheiro de naftalina!!!!

Luiz Carlos Vaz disse...

Vou postar em breve uma matéria sobre o Ringue 12. Vai ser ilustrada com a foto, autografada, do meu ídolo... Quem será êle?

Gerson Mendes Corrêa disse...

Quanto ao ringue 12, tenho duas coisas:
1º - Eldio macedo era cria de Bagé e pelo que ele falou torcedor do nosso Gurany.
2º - Eu servi com o fantomas, na Base Aérea de Canoas, ele era major nos idos 76, a pena que não lembro o nome dele e realmentge ele tinha um problema no joelo o qual ele enfaixava para as lutas, de modo que ficava com a perna dura.

Luiz Carlos Vaz disse...

Ótimas informações, vou usar na postagem. Obrigado.

Anônimo disse...

Amo o boxe ( Não sei como!!) e cheguei a sentir, respingando no meu rosto, o suor de Joe Frazier! Que linda e emocionante narrativa! Na época, eu não era gente ainda, mas cresci vendo meus pais vibrarem na sala, frente à velha TV preto e branco, marca General Electric, assistindo às lutas dos antigos mestres. Jamais assisti essa luta mas, através do blog, foi como se eu estivesse lá, xingando o coitado do peão que desligou o retransmissor.

Maribel Felippe

Luiz Carlos Vaz disse...

Obrigado Maribel. Hoje a imagem da tv é muito melhor, sem dúvida, mas a história dos primórdios da tv é cheia de fatos curiosos e muito interessantes. A editora Ardo Tempo está lançando em Porto Alegre, dia 24 de março, um livro que conta parte disso, chama-se "Os televisionários", de autoria de Walmor Bergesch.

Anônimo disse...

Que máximo lembrar coisas assim! Também assistiamos ringue doze a noite e nossa sala enchia de vizinhos, também para as novelas. Morávamos na rua Marcílio Dias, ao lado do D. Bosco (Auxiliadora) Meu Pai que era genial fez um acordo com os padres (incluindo o querido Pd Germano) e montou uma torre com uma antena espinha de peixe que foi instalada no telhado do colégio. Também, pasmem, montou uma antena a partir de uma banheira de metal enorme, uma coisa que parecia uma parabólica, sobre a qual na época nem se ouvia falar. Com tais "engenhocas" o sinal de tv lá em casa era ótimo e "pegávamos" também emissoras "castelhanas". Nossa TV era Phillips, vinha em um móvel com patas fininhas com rodinhas embaixo e tinha uma "janelinha" de correr na frente para cobrir quando não estava ligada. Lembro que a programação so iniciava a tarde. Meu Pai trabalhava na Rádio Difusora, depois também no Mini-cine, também no "Cine Ritz", que funcionava ali ao lado da nossa casa, no auditório do Auxiliadora. Ele também trabalhou no cine sete desde sua construção, onde foi gerente técnico. Belas recordações. Não estudei no Estadual, mas minhas irmãs sim. Um abraço. Dóris Schuch

Luiz Carlos Vaz disse...

Oi Dóris. Muito obrigado por comentar no nosso Blog. Vejo que muitos pais tipo "Professor Pardal" inventaram muita coisa para melhorar a captação dos sinais. Essa da "parabólica de banheira" foi genial... Mas eu quero saber mais do teu pai... ele deve ter muitas histórias e material sobre esses lugares onde trabalhou. Manda um mail para a gente trocar idéias sobre isso. Um abraço,
jornalistavaz@hotmail.com

Valença disse...

Bela narrativa!!!Parabéns! Prendeu minha atenção até a última linha e imaginei a decepção de um menino que vibrava em frente ao "aparelho" pelo término da luta. Eu lembro da chegada do homem na lua que assisti na TV de meu avô, junto com o resto da família e alguns hóspedes no antigo Hotel Central.

Luiz Carlos Vaz disse...

Obrigado, Valença, e é a mais pura verdade, não tem nada de invenção mesmo.

Sérgio M. P. Fontana disse...

Nós, lá em casa, imaginávamos [de brinquedo] que tinha um velhinho, lá na casinha da antena de TV, que ligava e desligava os transmissores todos os dias.
Às vezes, quando estávamos vendo um filme da atração chamada Campeões de Bilheteria, na TV Gaúcha, depois da novela das 10 da noite [que iniciava às 11 e terminava quase à meia-noite] a televisão saía do ar e a gente dizia que o tal "velhinho da antena" devia estar com sono e tinha resolvido desligar tudo para ir dormir.
ENTÃO ERA TUDO VERDADE!
O TAL VELHINHO EXISTIA MESMO!

Sérgio M. P. Fontana disse...

Sobre o Éldio Macedo - complementando o comentário do Gerson (de 18/03/10, às 13:01h).
O Éldio Macedo (04/12/1935) é natural de Rio Pardo, RS. Ele é afilhado do meu avô. No início da sua carreira, incentivado por João Cândido Fontana, que era meu tio, já residia em Bagé e trabalhava, junto com o meu pai, na VFRGS, o Éldio foi trabalhar em Bagé como jornalista e, sim, de fato, virou torcedor do Guarany FC por causa das cores [vermelho e branco] que o faziam lembrar do SC Internacional, clube pelo qual nutre grande simpatia desde guri.

Luiz Carlos Vaz disse...

Sim, Sérgio, nessa tal noite, teve gente que foi de carro até lá, para saber o que havia acontecido, e o tal peão já tinha se "recolhido". Mas ele não fez o "clic" de jeito nenhum, pois o ser Aracely havia dado ordens claras: meia noite = clac! e pronto!

Helena Ortiz disse...

Oi Vaz, que beleza de relato. Além da memória dos fatos conhecidos de muitos, pelo que vi nos comentários, a mim chegaram também umas falas gaúchas de que ando distante; e não tanto o sabor das sopas, mas a quentura que vinha delas, espantando o frio, aconchegando-nos nas casas, à maneira dos gaúchos. Um ritmo de fala peculiar das coisas que vistas hoje, eram tão ingênuas, tendo em vista a quantidade de possibilidades de hoje.
Nos tempos sem televisão só tínhamos uns aos outros.
E a televisão, que parecia juntar de início, acabou por nos separar. Quando veio o computador, então.
O bom é quando nos juntamos na memória e nos sentimos de novo aquecidos.
E tua avó tinha razão. O homem na lua era puro deslumbramento.

Luiz Carlos Vaz disse...

Um abraço, Helena.
O Blog hoje vive mais de memorias do que novidades.