Luto em vermelho
.
Helena Ortiz (*)
.
"A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.
.
Helena Ortiz (*)
.
"A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.
Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.
Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.
Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.
Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.
E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos". Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da
ilha desconhecida."
.
(*) Helena Ortiz, que não estudou no Estadual, edita o blog Integrada e Marginal e a revista eletrônica Panorama da Palavra. Já recebeu várias premiações literárias e publicou mais de uma dezena de livros, entre eles, Azul e sem sapatos, O silêncio das xícaras, Margaridas e Sol sobre o dilúvio. Mora atualmente no Rio de Janeiro.
.
ilha desconhecida."
.
(*) Helena Ortiz, que não estudou no Estadual, edita o blog Integrada e Marginal e a revista eletrônica Panorama da Palavra. Já recebeu várias premiações literárias e publicou mais de uma dezena de livros, entre eles, Azul e sem sapatos, O silêncio das xícaras, Margaridas e Sol sobre o dilúvio. Mora atualmente no Rio de Janeiro.
.
15 comentários:
Helena
Emocionante, muito, o teu lamento. Partilho teu respeito pelo tratamento que Saramago (não de graça sara no nome, ele cura, com delicadeza as marcas a nós mulheres imputadas), dedicava às mulheres.
Linda a foto, observe a mão dele enlaçando o peito de Pilar: é forte, doce, envolvente. Observe o olhar e o sorrir dele: parece dizer é dessa água que vivo.
Te imaginei a cortar os pimentões e que devias querer um abraço: te envio daqui.
Cristina Rosa
Helena & Vaz, ou vice-versa
Muito obrigado a ambos. Ao Vaz que continua a manter o blogue num nível impressionante. À Helena que, mesmo não tendo estuddo no Estadual, escreveu uma das coisas mais lindas que li sobre a morte do nosso Saramago (com quem tive a honra de privar um tanto) património dos lusófonos, mas também do Mundo. E a Pilar del Rio merece.
São pequenas obras primas como esta que enchem de orgulho os que fazem do Português a sua Pátria, como disse o também nosso Pessoa. Ou seja, nos enchem de orgulho legítimo, justo e justificado, Portugueses e Brasileiros e vice-versa.
Qjs & abs
Prezado Henrique,
Obrigada por suas palavras. Que sorte você teve em conhecê-lo. Eu só o vi um único dia, quando esteve no Brasil e fez uma palestra. E esse único dia me produz até hoje o mesmo encantamento.
Espero honrar a nossa língua, mas quem agora, honrará a humanidade levantada do chão?
um abraço
Helena
Deixo aqui no blog do Estadual, o meu reconhecimento por um "ser humano especial" que soube passar por esta vida, dividindo a sua cultura com todos nós. Obrigado Saramago.
Foi embora o escritor,
ficou a sua obra.
Foi embora o corpo,
ficou o espírito de Luz.
Foi embora o seu movimento,
ficou a sua ação registrada
Foi embora o homem - Saramago.
Ficou a mulher - Pilar Del Rio.
Foi embora o nobre - nobel,
ficou a musa - amada.
LINDO...TOCANTE...
SARAMAGO ESTÁ VIVO... E SEMPRE ESTARÁ... PORQUE SUA OBRA É IMORTAL...
Vaz: Belo texto este da Helena Ortiz, bem captada a mensagem de Saramago.Somos todos órfãos. Cumporimenta-a por mim. Em meu blog www.doravantebrasil.blogspot.com postei alguns trechos de Saramago, um texto meu ( Legados da Alma )e um filme de história infantil, no qual ele é protagonista e narrador. Para informação de vocês, se não me conhecem, nasci em Bagé. Abraços.
Ianzer, poeta sempre fala poesia. Abs
Sim, Janice. Que seja dessa forma. Pelo menos.
Esse é o Ferreira! Nosso mais assíduo leitor e seguidor lusitano. Teve o privilégio de privar com esse homen...
Paulo, obrigado por passar, chegar e seguir. Belo blog o seu. Já já vou dar uma atenção melhor a ele. Hoje o dia está corrido. Foi uma semana de perdas, sem dúvidas...
Obrigado, Vaz. Fico honrado. Abraços.
Obrigada Cristina Rosa,
eu queria sim, esse abraço. Viste a foto como eu a vi, envolvente e amante. E esse sentimento serve para nós e para todas as mulheres.
Enquanto pensamos assim, a querê-lo, a necessitar dele desde agora, espero que seu espírito (falo a partir das minhas crenças) não nos abandone.
um grande abraço
Helena
"(...) De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século teve seu dinheiro, cada reino o seu homem para comprar e vender (...)" JOSÉ SARAMAGO...
Lindo o artigo da Helena! Ela conseguiu juntar-se à Pilar em sua dor que com certeza é uma dor especial, mais doída do que a nossa dor de leitores! Texto muito comovente!
Escrevi também sobre Saramago no blog da minha escola:
emefjoaodasilva.blogspot.com
O "vazio da morte" só é real quando "não deixamos nenhuma marca",Saramago não deixará espaço vazio..pos a sua doce e suave marca, que a muitos embalou e encantou ,nos envolverá e acompanhará até o infinito.
Postar um comentário