14 de abril de 2013

Minhas Lições

Aplicação de GIMP em imagem da web por J L Salvadoretti


Minhas Lições

Vera Luiza dos Santos Vaz

Abril, com seu jeito de final de verão, sempre me encontrou meio pensativa desde a infância.

Pensar, repensar, observar, tentar entender, sempre fizeram parte de meu andar através do tempo...

Explicar-se-ia, assim, talvez, o meio estranho modo de olhar e tentar viver a vida?

Neste início de abril, em que completo meus sessenta e cinco outonos, percebo em mim ainda a presença forte da guriazinha dos cachinhos de ouro, como a mim se referiam as pessoas, fazendo comparação com a menininha que enfeitava uma das leituras do livro MInhas Lições, no segundo ano do Curso Primário, nos idos de 1956, na Escola Santo Antônio em Bagé.

De índole absolutamente sincera, sempre me foi difícil dominar o impulso de defender solenemente a verdade, a justiça.

Ah! Quanta encrenca esse jeito simples, mas forte, me trouxe, enquanto não pude entender, não sem profunda dor,  que a verdade, muitas vezes, deve se fazer de morta, cedendo lugar, embora temporariamente, à deslavada mentira...

Antigos dias me encontraram pensativa, diante da incapacidade de concordar com o que considerava errado, injusto, maldoso até.

Chovia naquela manhã distante e fria de final de abril. Chuva fina, persistente, não nos impedia de ir à escola. O sentido do dever começava cedo, tanto para mim, como para meus irmãos e minha irmã.

A professora Joana marcara como tarefa para casa uma "infinidade de contas", assim eu sentia. Os cálculos, que deveria trazer no dia seguinte, "armados e resolvidas", do 100 aos 300 para dividir por um certo número, não lembro qual. E assim seguiam diariamente...
Passava  a manhã na escola. A tarde, já sabia, era dedicada aos benditos temas, sempre intermináveis.

Algumas vezes, minha mãe e minha irmã me ajudavam nos deveres, porque percebiam que sozinha, deles, não daria conta. Sempre havia uma cópia de um texto do livro, mais todos os exercícios propostos para a lição, copiados e feitos no caderno.
Também marcara, naquele dia, a professora, como matéria de estudo "toda a tabuada" de multiplicar!

Aos poucos, naquela fria e chuvosa manhã, os alunos foram chamados para "irem ao quadro-negro", resolver uma linda  "conta" proposta pela mestra Joana: 987654321 divididos por 123456789!!!!

Se agora eu fosse tentar resolver essa operação, sem uso de calculadora, teria dificuldade, eu creio, não tentei...

Não sei qual a utilidade desse cálculo. Provavelmente colocar à prova a sanidade das crianças, seu grau de submissão, sua capacidade de avaliação de uma situação escolar injusta, sem embasamento pedagógico.

No meu pequeno entendimento na época, já podia perceber o quanto havia de despotismo na ação da professora.

Quando a minha vez chegou de ir ao bendito "quadro" para tentar resolver o cálculo, os cantos da sala já estavam cheios de alunos que "não souberam" resolvê-lo e, como consequência lá estavam no canto "como castigo"!

Anunciou, a professora, que eu me encaminhasse ao quadro, com sua voz forte e convincente!

Meu estômago, já em pânico há algum tempo, enrolou-se todo. Meus intestinos deram sinal de que iam funcionar!

Aguentei a revolução interna e me encaminhei para a tentativa, já sabia, frustrada, de resolução do cálculo! Na minha cabeça cantava, como se fosse uma canção: nove vezes nove oitenta e um! Era o que eu conseguia me lembrar! Como, então, resolver aquele cálculo?

Percebendo que eu também não conseguia, a professora anunciou que eu me dirigisse para o "canto"!

Senti toda a injustiça de que estava sendo objeto! Uma força interna irreprimível me fez falar!

Anunciei à professora que "eu não iria para o canto porque aquilo era uma atitude errada e injusta comigo e com todos os alunos!"

Cena seguinte, sou expulsa da sala e da escola!

Enxergo-me, ainda agora, a descer as escadas sozinha, enquanto a professora me acompanhava com o olhar fulminante.

As lágrimas, abundantes, escorriam pela face, enquanto eu pensava o que ia fazer.

Acontece que eu não ia sozinha à escola. Ia com meu irmão e irmã, mais velhos que eu. O irmão mais moço ainda não frequentava a escola. Naquele momento, meu irmão e minha irmã estavam em suas respectivas salas. Nada sabiam...

Ao chegar à rua, enfrentei a chuva, que se misturou às lágrimas, enquanto decidia o que fazer...

Lembrei-me, então, que meu pai trabalhava a algumas quadras dali.

Embora o trânsito, naquele tempo, ainda não fosse intenso, as ruas que eu precisei atravessar eram de grande movimento sempre.

Eu chorava, quando entrei na loja em que meu pai trabalhava. Ele se assustou ao me ver, porque, em nenhum instante, pensara  me ver entrar ali, sozinha, chorando, expulsa da escola pela professora!

No momento seguinte, ele me conduzia de volta à escola.

Ao chegar à sala de aula, abriu a porta, conduziu-me ao famoso "canto". Disse à professora que falaria com ela à tarde, junto com minha mãe e a diretora da escola.

Lá fui eu, reconduzida ao injusto castigo.

Naquela tarde, intensas foram as conversações a esse respeito na escola.

Hoje penso que a professora teve sorte com o modo firme, seguro, mas amistoso, como meus pais gerenciaram a questão.

Não sei se a professora entendeu o quanto havia sido injusta, severa demais, evidenciando nenhum preparo para o exercício da tarefa educacional.

O ano letivo, depois do conturbado episódio, transcorreu com ainda mais ajuda em casa, muitas conversas sobre o ocorrido, mas nenhum incentivo à minha atitude rebelde.

Sentia eu, no entanto, que, embora meus pais não me apoiassem diretamente, me orientavam de longe e devagar.

Penso hoje que foi graças ao apoio que tive em casa que não passei a detestar o estudo. Ao contrário, meu entusiasmo pelo saber continuou crescendo sempre.

Todavia, a cada situação de estresse escolar, meus intestinos se rebelavam prontamente...
No ano seguinte, acredito, fui recompensada pela presença de uma professora afetuosa, gentil, receptiva e doce. Quando lembro da professora Vera Maria Menna Barreto, professora da terceira série, sinto profunda saudade e gratidão.

Nas manhãs de frio, costumávamos, as alunas, caminhar em direção à sala de aula de braços com a professora. A cada dia, nos revezávamos em tão agradável tarefa.

Tão fofinha em seu casaco de pele (nada politicamente correto nos dias de hoje...). Alta, olhos claros, atitudes delicadas, embora severas, quando necessário, para que não passássemos do limite, o que não fazíamos, porque  ela nos despertava profundo respeito e admiração.

Os anos que se seguiram foram muito importantes para um bom aprendizado escolar. Isso me levou ao ingresso no Colégio Estadual de Bagé, referência de ensino de qualidade na época e ainda hoje, através de Exame de Admissão ao Ginásio, uma prova disputadíssima, no final do ano de 1959.

Alí eu estudaria pelos próximos sete anos, fazendo o Ginásio de 1960 a 1963. O Científico de 1964 a 1966. No ano de 1967, ingressava na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Bagé para o meu primeiro curso de nível superior.

Ao longo da vida, tenho agido sempre conforme o fundamento que me foi entregue em concepção, eu acredito. Acrescido do aprendizado familiar, vivencial, tornei-me um ser humano de esperança, de sinceridade, de crença, de fé...Valores imprescindíveis para um viver de verdade!

Muitas as lições aprendidas ao longo do caminho, desde as primeiras impressas em folhas de papel, passando por todas as demais de vivência e convivência, às vezes fáceis, noutras nem tanto, mas todas gravadas indelevelmente na mente, na memória, no coração, fazendo e fundamentando a vida.

Todas aprendidas como Minhas Lições!
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Publicado em Contos ao entardecer
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2 comentários:

Gerson disse...

Tchê Vaz, no meu tempo de Silveira Martins, Espirito Santo, Auxiliadora e do no nosso ESTADUAL, o absolutismo dos professôres, embora pudessem, já não era tão punitivo, como relata a "cachinhos de ouro". Todavia, fico pensando como mudou a ordem das coisas, hoje são os alunos que mandam na escola e isso me faz pensar,será que não é uma punição divina a nobre classe dos professõres? No entanto será que já não seria hora de termos professôres iguais aos do nosso tempo? É claro sem a crueldade que os acompanhava. Porque se foi uma punição divina não resolveu o problema, pelo contrário, piorou.
Um baita abraço índio velho.

Anônimo disse...

Pois, Vaz...

Sacudindo um pouco o "spleen", chego aqui para dizer do quanto é bela e reminiscente esta narrativa da nossa Vera Luiza!
É uma maravilha de texto. Poderia chamá-lo de crônica? Sim. Poderia chamá-lo de conto? Com certeza. Segundo meu singelo ponto-de-vista, é claro. Na riqueza de detalhes, a memória se mostra brilhantemente viva e, ainda, dolente em sua Emoção! Eu o li três vezes. O que não significa que não o leia outras vezes. Em todas elas, me embrenhei pelos tempos em que, criança/menino, fui estudar em meu inesquecível "Grupo Escolar XV de Novembro". E veio - entre tantas outras memórias queridas - meu primeiro dia de aula. E os conselhos de minha mãe, depois de me dar o banho, me "arrumar" em cima de um banquinho, com aquele flamante tapa-pó branco - que minha bondosa avó materna fizera -, me pentear e me dar o café com leite puro, (de uma vaquinha que tínhamos em casa). E enquanto todo esse ritual era feito, minha mãe Nena continuava me aconselhando. E que conselhos para uma criança... Todavia, até hoje eu os ouço. Guardei-os em meus ouvidos. E posso dizer que tais conselhos alicerçaram, desde então, minha vida... São feito troféus bem guardados numa imaculada cristaleira resistente às intempéries de modos e costumes demasiadamente avançados - que me fazem parecer, (e ser), hoje, um peixe fora d'água...
Vaz, a Vera Luiza sabe como contar uma história debruada de Emoção, costurada pelas Lembranças, a quatro mãos com o Tempo... Seus personagens estão vivos - todos! Mesmo os que já passaram para o Outro Lado da Vida... Nesta narrativa tão viva - que me puxou por um "Túnel de Tempo", as lágrimas daquela menininha de "cachinhos de ouro" não estão mais em seu rosto... Há muito tempo. Todavia, creio que, desde então, fugiram para o recôndito indevassável da Alma...
De tantas e tantas recordações que despertaram em mim, só a das lágrimas não me recordo. Pelo simples fato de que não as tive - fui poupado... Lembro de todas minhas professoras do Primário, inclusive, da Diretora, e todas - sem exceção - foram realmente muito pacienciosas e bondosas para comigo. Sei que todas estão guardadas com muito Carinho, neste agrisalhado coração-curumim!
E, aqui, Vera e Vaz, vou finalizando estas palavras de conterrâneo e amigo.
Parabéns, minha amiga, pela beleza de Alma e pela grandeza de coração! Quanto a Abril, não preciso dizer nada: o Espírito do Outono já nos diz tudo - em seus tons delicados, em suas flores, em sua Luzes diáfanas, em seus acordes íntimos tangendo o Espírito, em seus reflexivos Silêncios...
Parabéns, Vaz, pela oportuna e feliz publicação!

Um abraço franciscano e bem bageense para ambos!
JJ!