20 de setembro de 2019

Der Trafikant, ou A Tabacaria de Sigmund

Cartaz do filme                                                   Foto: L.C.Vaz


Der Trafikant, ou A Tabacaria de Sigmund

Luiz Carlos Vaz (*)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos (e pesadelos) do mundo.
A Tabacaria, Álvaro de Campos

Por recomendação da amiga Suzana fui ao cinema assistir A Tabacaria. À primeira vista, é claro que lembramos de Fernando Pessoa. Mas não há qualquer referência a ele ou a qualquer de seus heterônimos.

O filme, que foi lançado no Brasil este mês (Der Trafikant teve estreia nacional dia 5 de setembro), é ambientado na Viena de 1937 e conta a história da impossível ou improvável amizade que surge entre Freud e um jovem de 17 anos.

Por recomendação de sua mãe, o jovem deixa o interior da Áustria para a capital, a fim de trabalhar numa tabacaria frequentada regularmente pelo já reconhecido psicanalista. Na “cidade grande” Franz conhece e se apaixona por uma “experiente corista” da Boêmia, Anezka, descobre a história de um dos charutos preferidos de Freud, e também meus, os Hoyo de Monterrey, aprende como deve ler jornais e como enfrentar o desamor.
Acompanha a ascensão do Reich, se enoja com o comportamento abjeto dos traidores da pátria ao mesmo tempo em que anota freneticamente seus pesadelos e sonhos, por recomendação de Freud, assim como também “sonha” em poder deitar um dia em seu famoso divã.

O filme aborda o pesadelo recorrente do nazismo que sempre assombrou a Europa, afinal, ele nasceu, morreu e ressuscitou lá. Faz pouco tempo que esse pesadelo, digno de ser anotado e levado até o Dr. Sigmund para análise, começou também a nos perturbar.

Todos sabemos que a América passou a ser o endereço de milhares de nazistas no pós-guerra. Mas... como estamos em 2019, também sabemos que nenhum deles sobreviveu. O que sobreviveu foi a ideia. Porque ideias não morrem. Sobrevivem aos seus criadores como semente ruim em meio à terra fértil pouco cultivada.

Ironias cinematográficas à parte, é interessante ver o ator Bruno Ganz, recentemente falecido (16 fevereiro de 2019) que celebrizou as cenas de Hitler no filme A queda, interpretar o Dr. Freud fugindo justamente do nazismo.

Ultimamente o cinema tem me tirado o fôlego. Mas, com ou sem fôlego, o que não quero é que me tirem o cinema, embora esteja mais para Otto Trsnjek do que para Franz Huchel... Por via das dúvidas estou anotando desde já todos os meus sonhos e pesadelos.

P/S Um dia desses encontrei o meu amigo Armando com um boton novo na lapela. Elogiei e ele disse: É Fernando Pessoa, um Regalo que a querida Manu me trouxe de Lisboa. Respondi, Armando, Pessoa não usava barba, esse é Freud! E não é que essa história juntou uma Tabacaria, como a de Pessoa, e o Freud da lapela do Armando?

Mas... eu insisto com o Armando. É Freud. Pessoa usava só um bigodinho. Tirem suas conclusões olhando a foto.

(*) Jornalista, fotógrafo e editor deste Blog

17 de setembro de 2019

“As lanternas da cidade” – VIII, Fim de partida

Arquivo do autor


Fim de partida

Angelo Alfonsin

no dia que vim embora
minha mãe gritou muitos
ais
não para que eu ficasse
mas que me mandasse
dali
estava doendo aquela
saída
não era saudade
nem medo
um mangue de cobrir a cara
de caretas rindo do meu
primeiro embate
de santo guerreiro contra o dragão
da realidade
a gritaria da mãe era de corar
as paredes
resfolegando como o último trem
da estação
era o início de aprender
que a vida cobra uma fortuna
pelo ar respirado
mesmo dos afortunados
para usar a alcunha de vivos
com a compreensão eternamente torta
do que possa ser essa alucinação
em que se é expulso quando se pensa
ter chegado
e
deportado quando não se tem mais
para onde ir

14 de setembro de 2019

Meu formigueiro, minha vida!

Algumas fotos que fiz das invasões e um cartaz de filme


Meu formigueiro, minha vida!

Luiz Carlos Vaz (*)

dedicado ao poeta Pedro Gonzaga

Pela terceira vez num espaço de três anos, formigas que devem ter um comando central em algum lugar aqui da parede do prédio, se alojam na tampa da minha garrafa térmica e começam uma ocupação prá valer. Só percebo os sinais da invasão anual pré primaveril quando, tomando mate de manhã cedo, num repente, surge uma invasora desesperada fugindo do excesso de calor na tampa-ninho-berçário.

Como já desmontei e remontei mais de uma vez as inúmeras peças que compõe a tampa-sifão em cada ocorrência, e higienizei tudo com detergente, sabão e até com álcool para tirar qualquer vestígio de rota, cheiro, feromônio, mapa... penso em comunicar à NASA o fato, pois esses pequenos seres me parecem, que além de teimosos, são alienígenas em busca de vida inteligente por aqui. Mas... logo agora?

Creio firmemente que as pioneiras da descoberta do lugar “quente, agradável e protegido de predadores”, deixaram um caminho, uma meta, um compromisso... na memória genética do grupo para as próximas gerações a fim de garantir o futuro dessa espécie.

Lembro sempre dos velhos filmes de ficção científica de Hollywood quando esses minúsculos e ainda desconhecidos seres, tão combatidos durante milênios, foram protagonistas de diversas cenas de suspense em cinemas lotados. 

Mas... cá para nós, por que tinham que escolher logo a tampa da minha garrafa térmica de estimação? Estou pensando em comprar uma garrafa sem sifão ou passar a tomar mate usando uma tradicional chaleira de ferro...

A propósito, alguém aceita convite para matear comigo amanhã cedo?

Para meditar, o poema
Formigas do Colorado, do
Pedro Gonzaga

À luz de um sol branco
- dezembro arde em Porto Alegre -
busco abrigo às cegas
na fachada do antigo sebo
tantas vezes percorrida
em horas mais cálidas.

Mergulho na penumbra,
e um cheiro doce
quem sabe a mofo
brota dos cadáveres,
silenciosos e encadernados faraós
desprovidos de pirâmides.

Enquanto meus olhos
se acostumam à noite ali dentro
meus dedos percorrem com vaga cautela
as estantes empenadas em que
livros de fantasiosas ciências,
roucos,
apelam da escuridão:
um compêndio de biologia,
um tratado de química orgânica em espanhol
que cansou de dizer a realidade em 1940,
tantos carbonos e hidrogênios
inutilmente
desperdiçados.

Pouco depois,
uma grossa lombada diz
em inglês
Formigas do Colorado.

Assusta-me o fato de que um homem
perdido entre longínquas montanhas
tenha dedicado sua vida às
formigas do Colorado.

Que promessa de felicidade terrena
ou eterna
pode levar alguém
a dedicar a força de seus membros
a usina de seu cérebro
o combustível limitado das gônadas
às formigas do Colorado?

Quase posso vê-lo,
senhor das formigas,
circunspecto
lustroso de autoridade,
garboso na sala decorada com esmero
madeiras escuras
e envernizadas
o feltro verde sob o tampo
o digno gabinete
do digno autor de
Formigas do Colorado.

Você não tem seriedade,
mr. Gonzaga,
você se farta na galhofa.
Onde está sua obra,
mr. Gonzaga,
onde está o seu legado?

A custo
penso nos dois volumes de contos
e no exíguo livro de versos
à espera de publicação.

Uma coisa, no entanto, me consola,
senhor Formigas do Colorado,
e a você dedico este semi-sorriso frouxo
que meus lábios não labutam para manter:
eu estou aqui,
vivo,
meu sangue ferve,
posso ser fera esta noite,
meus músculos vibram
e tenho uma mulher
que me espera.

Tudo isso passa, eu sei,
mas, ah,
que se fodam
as formigas do Colorado.

2 de setembro de 2019

Pegue uma canção triste e torne-a melhor

Imagem promocional


Pegue uma canção triste e torne-a melhor

Yestarday, o filme

Luiz Carlos Vaz (*)

No fundo o filme Yesterday é apenas mais uma história de amor. Como assim “apenas mais uma história de amor?”

Sim, é! Mas é uma história de amor com muitas referências a outros filmes, outros momentos, do cinema e da arte, para poucos entenderem, alguns apreciarem e para todos curtirem. Ed Sheeran ao perceber o talento de Malik relembra Amadeus, do Milos Forman, dizendo a ele “eu sou apenas Salieri, você é Mozart”. E não só a memória dos Beatles que desapareceu após o blackout mundial, a Coca Cola também sumiu do planeta!!! Em uma cena com Rocky ele faz referência a vontade de fumar um cigarro, ao que o “assistente” responde perguntando o que é cigarro? Muito humor britânico ao “escolherem” no cardápio da lanchonete fish and chips... e a precisão inglesa, também por parte de Rocky, ao cronometrar com detalhes de segundos o tempo que ainda sobrava a eles na gare. No rastro do “desaparecimento da memória dos Beatles”, some também da pesquisa Google o grupo Oasis... mas qual jovem se lembrará que em 1966 Noel Gallagher disse que o disco Definitely Maybe mostravam que sua banda era maior que os Beatles?

Mas Yestarday é uma história de amor... o amor entre Malik e Ellie, que começa aos dez anos de idade, que os transforma em “irmãos”, e é a barreira conservadora para que ele não floresça nos primeiros cinco minutos do filme... Yesterday vai atropelando um pouco nossa emoção por não dar tempo para curtir completamente as músicas que vão compondo a trilha sonora e vão saltando aos pedaços. A apresentação “pela primeira vez” de Let it be, “como se fora um privilégio dado para apenas para três pessoas assistirem Leonardo pintando Mona Lisa”, se transforma em comédia quando o pai diz, para desespero de Malik, “pule a introdução, eu já ouvi três vezes...”
Quando uma empresária caricata de L.A. perceba o possível sucesso de Malik, e o leva aos EUA, onde, no estúdio, rejeita todas as músicas efetivamente de sua autoria, como Summer Song, (ela também só gosta de “Beatles”) Malik começa a ter pesadelos com medo de ser descoberto mundialmente como um enganador... mas seu intuito é de apenas manter a verdade da célebre frase: “o mundo seria bem pior sem o Beatles”... É John, um pintor recluso morando numa casinha à beira da praia, já com 78 anos... que aconselha Malik,
Diga a ela que a ama! Só isso.

Para quem já não aguenta as trapalhadas de Jack Malik, ao final, Hey Jude, com seus generosos seis, oito ou dez minutos, mostram os extensos créditos do filme e nos colocam de volta aos anos sessenta.... 
Hey, Jude
Hey, Jude, não fique mal 
Pegue uma canção triste e torne-a melhor 
Lembre-se de deixá-la entrar em seu coração 
Então você pode começar a melhorar as coisas 
Hey,Jude, não tenha medo 
Você foi feito para ir lá e conquistá-la 
O minuto que você deixá-la debaixo da sua pele 
Então você pode começar a melhorar as coisas 
E qualquer vez que você sentir dor 
Hey, Jude, vá com calma 
Não carregue o mundo nos seus ombros 
Você bem sabe que é tolice 
De quem lida com isso com indiferença
Por deixar este mundo um pouco mais frio 
Na na na na na na na na 
Hey, Jude, não vá me desapontar
Você a encontrou, agora vá e a conquiste 
Lembre-se (Hey, Jude) de deixá-la entrar em seu coração 
Então você pode começar a melhorar as coisas 
Então coloque para fora e deixe entrar
Hey, Jude, comece 
Você está esperando por alguém com quem realizar as coisas 
E você não sabe que essa pessoa é exatamente você? 
Hey, Jude, você vai fazer! 
O movimento que você precisa está nos seus ombros 
Na na na na na na na na 
Hey, Jude, não fique mal 
Pegue uma canção triste e torne-a melhor 
Lembre-se de deixá-la debaixo de sua pele 
Então você começará a melhorar as coisas 
(melhorar, melhorar, melhorar, melhorar, oh!) 
Na, na na na na na, na na na, Hey, Jude 
Na, na na na na na, na na na, Hey, Jude

(*) Luiz Carlos Vaz
    jornalista e editor deste Blog