14 de setembro de 2019

Meu formigueiro, minha vida!

Algumas fotos que fiz das invasões e um cartaz de filme


Meu formigueiro, minha vida!

Luiz Carlos Vaz (*)

dedicado ao poeta Pedro Gonzaga

Pela terceira vez num espaço de três anos, formigas que devem ter um comando central em algum lugar aqui da parede do prédio, se alojam na tampa da minha garrafa térmica e começam uma ocupação prá valer. Só percebo os sinais da invasão anual pré primaveril quando, tomando mate de manhã cedo, num repente, surge uma invasora desesperada fugindo do excesso de calor na tampa-ninho-berçário.

Como já desmontei e remontei mais de uma vez as inúmeras peças que compõe a tampa-sifão em cada ocorrência, e higienizei tudo com detergente, sabão e até com álcool para tirar qualquer vestígio de rota, cheiro, feromônio, mapa... penso em comunicar à NASA o fato, pois esses pequenos seres me parecem, que além de teimosos, são alienígenas em busca de vida inteligente por aqui. Mas... logo agora?

Creio firmemente que as pioneiras da descoberta do lugar “quente, agradável e protegido de predadores”, deixaram um caminho, uma meta, um compromisso... na memória genética do grupo para as próximas gerações a fim de garantir o futuro dessa espécie.

Lembro sempre dos velhos filmes de ficção científica de Hollywood quando esses minúsculos e ainda desconhecidos seres, tão combatidos durante milênios, foram protagonistas de diversas cenas de suspense em cinemas lotados. 

Mas... cá para nós, por que tinham que escolher logo a tampa da minha garrafa térmica de estimação? Estou pensando em comprar uma garrafa sem sifão ou passar a tomar mate usando uma tradicional chaleira de ferro...

A propósito, alguém aceita convite para matear comigo amanhã cedo?

Para meditar, o poema
Formigas do Colorado, do
Pedro Gonzaga

À luz de um sol branco
- dezembro arde em Porto Alegre -
busco abrigo às cegas
na fachada do antigo sebo
tantas vezes percorrida
em horas mais cálidas.

Mergulho na penumbra,
e um cheiro doce
quem sabe a mofo
brota dos cadáveres,
silenciosos e encadernados faraós
desprovidos de pirâmides.

Enquanto meus olhos
se acostumam à noite ali dentro
meus dedos percorrem com vaga cautela
as estantes empenadas em que
livros de fantasiosas ciências,
roucos,
apelam da escuridão:
um compêndio de biologia,
um tratado de química orgânica em espanhol
que cansou de dizer a realidade em 1940,
tantos carbonos e hidrogênios
inutilmente
desperdiçados.

Pouco depois,
uma grossa lombada diz
em inglês
Formigas do Colorado.

Assusta-me o fato de que um homem
perdido entre longínquas montanhas
tenha dedicado sua vida às
formigas do Colorado.

Que promessa de felicidade terrena
ou eterna
pode levar alguém
a dedicar a força de seus membros
a usina de seu cérebro
o combustível limitado das gônadas
às formigas do Colorado?

Quase posso vê-lo,
senhor das formigas,
circunspecto
lustroso de autoridade,
garboso na sala decorada com esmero
madeiras escuras
e envernizadas
o feltro verde sob o tampo
o digno gabinete
do digno autor de
Formigas do Colorado.

Você não tem seriedade,
mr. Gonzaga,
você se farta na galhofa.
Onde está sua obra,
mr. Gonzaga,
onde está o seu legado?

A custo
penso nos dois volumes de contos
e no exíguo livro de versos
à espera de publicação.

Uma coisa, no entanto, me consola,
senhor Formigas do Colorado,
e a você dedico este semi-sorriso frouxo
que meus lábios não labutam para manter:
eu estou aqui,
vivo,
meu sangue ferve,
posso ser fera esta noite,
meus músculos vibram
e tenho uma mulher
que me espera.

Tudo isso passa, eu sei,
mas, ah,
que se fodam
as formigas do Colorado.

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