A diluição dos ritos fúnebres na contemporaneidade
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Elaine Maria Tonini Bastianello (*)
Vivemos em tempos que podemos caracterizar como “descartáveis”. Este período é denominado, pelo sociólogo polonês contemporâneo Zygmunt Bauman (2007) de Modernidade líquida. Tais condições podem ser observadas nas relações da atual sociedade com a morte. Assim, a contemporaneidade se ocupa em derreter as práticas tradicionais de sepultamentos priorizando outras práticas mais fugazes no tempo e na materialidade. Diante dessa liquidez escorregadia desses tempos, nos quais toda a pompa fúnebre e, consequentemente, o luto, se diluíram no ar, como ficam a questão da memória e a questão das práticas cotidianas de inumações dessa sociedade?
Na parte antiga do Cemitério da Santa Casa de Bagé - Primeira Divisão - encontramos uma riqueza artefactual que, através da pedra branca, registra a opulência econômica dessa cidade, produzida na virada do século XIX para o século XX. Nesse espaço, encontramos túmulos suntuosos, únicos, que foram encomendados pelas famílias às marmorarias e marmoristas em homenagem aos seus mortos. Em alguns desses monumentos tumulares, podemos constatar as rubricas de seus fabricantes. Toda essa pompa serviu para glorificar a memória de seus mortos e, ao mesmo tempo, afirmar o status da família perante a sociedade.
Essa prática suntuosa de enterramento é raramente utilizada em nossos dias, devido ao alto custo e também à inexistência desse tipo de saber-fazer que se perdeu.
Dessa forma, o espaço de sepultamento sofreu uma mudança radical, pois os grandes túmulos foram aos poucos sendo substituídos por túmulos mais simples e coletivos. Atualmente predominam os sepultamentos em gavetas, e os adornos muitas vezes se limitam às flores compradas nas lojas de 1,99. Além de toda essa banalização, ainda temos a cremação cada vez mais solicitada em vida. Essa prática pode ser considerada como o extermínio do ser, pois não se tem o túmulo, nem a lápide. É o verdadeiro apagamento da memória do morto no mundo dos vivos.
O mesmo ocorre com o processo de velamento do corpo do morto. Antes uma prática realizada nas residências, esse ato de velar em casa, que se estendia por 24 horas, fazia parte do cotidiano das famílias. Maranhão (1992, p.17) destaca que, na contemporaneidade, cada vez menos se tolera a presença do defunto em casa. Seja por razões de ordem higiênica, ou pela ausência de condições psicológicas para enfrentar a realidade, essa prática basicamente se extinguiu. Em Bagé, esse procedimento também mudou com a criação das capelas fúnebres junto ao Cemitério da Santa Casa. Esse acontecimento contribuiu para terminar com os velórios residenciais e também para “esconder” o velório, tirando-o do espaço dos vivos e transportando-o para o espaço dos mortos.
Percebemos que, na atualidade, a morte é tratada às escondidas, com discrição, sem pompa, sendo ainda pouco comentada, exigindo da família enlutada um autocontrole de seus sentimentos. Toda a pompa de carruagens, franjas e luto foram subtraídas num ritual simplificado e prático, no qual as luzes artificiais nas capelas mortuárias e as guirlandas de flores são os maiores adornos para com o defunto.
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A cidade de Bagé contava com várias empresas funerárias como a Empresa Funerária de Francisco Machado, (que mudou o nome para Casa Armadora), a Funerária Médici, a Funerária Almeida e outras que possuíam toda uma estrutura de adornos, os quais tornavam o velório tão luxuoso quanto os seus jazigos.
Essas empresas disponibilizavam uma variedade de artigos, alguns vindos diretamente da Europa, proporcionando à elite econômica dessa sociedade exibir em seus velórios uma verdadeira pompa fúnebre.
Enquanto algumas famílias possuíam condições econômicas de usufruírem de todo um aparato para com os seus mortos, outras ficavam limitadas ao bate-bate, oferecido pelos serviços da Santa Casa de Caridade, desta cidade.
O “bate-bate” - uma carroça fechada, tipo baú, puxada por cavalo – saía diretamente da Santa Casa em direção ao cemitério, conduzindo os indigentes. Bate-bate é o nome-apelido atribuído ao carro funerário das pessoas carentes da cidade. Esse nome se deve ao fato de esse veículo de tração animal apresentar um barulho semelhante a uma catraca de madeira, característico dessa carroça fúnebre, que anunciava a sua passagem pelas ruas.
Processo análogo aconteceu há mais de um século quando se proibiram os sepultamentos dentro das igrejas em locais fechados e criaram-se os espaços abertos, exclusivos para a inumação dos mortos, os cemitérios.
Os deslocalmentos são os mesmos: antes, da igreja para os cemitérios, agora, das residências-hospital para as capelas. Em ambos os casos ocorreram mudanças radicais nas práticas cotidianas, mas a sociedade acabou por assimilar as duas formas de mudanças culturais.
Assim como os monumentos tumulares se exauriram, também se modificou a postura do homem mediante as práticas de velamento. Examinar essa pomposidade na cidade de Bagé significa contar uma parte da sua história. Compreender suas atitudes cotidianas, suas transformações, seus valores religiosos, morais, como tantos outros, possibilita-nos resgatar a memória, conhecendo a forma de essa sociedade se portar e se enfeitar diante da morte.
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(*) Elaine Maria Tonini Bastianello
Licenciada em História – UFSM
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultura – UFPel
Membro da ABEC - Associação Brasileira de Estudos Cemiterial.
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