17 de novembro de 2011

O bolo “eclipsou”

Detalhe da foto feita pelo Prof Ducati do Eclipse Total do Sol de 1966 em Bagé



O bolo “eclipsou”

Claudete Mari Costa Macedo

Bagé, 12 de novembro de 1966.

Era o dia do meu 10º aniversário e por isso eu estava radiante.  As dificuldades financeiras não permitiam que os aniversários da família fossem comemorados todos os anos. A minha última festinha tinha sido a dos cinco anos.  Mas, aquele dia 12 de novembro de 1966, seria inesquecível, mesmo sem nenhuma foto para a posteridade. Minha mãe havia prometido que eu poderia convidar as amiguinhas para comer um bolo e, de véspera, preparou uns salgadinhos. Em torno das 11 horas, minha irmã, a mocinha da casa, com 17 anos, foi buscar o tão esperado bolo.

Em casa, por conta de comer as massinhas ainda cruas dos salgadinhos na véspera, eu me dividia entre o banheiro e a cama.

Mas a correria lá fora, na rua São João,  era grande. Os vizinhos se encontravam, faziam comentários. Meu irmão, de 14 anos, corria de um lado para outro procurando uma “chapa” de R-X ou um pedaço de vidro para esfumaçar. Ele havia escutado na rádio que era assim que tinha que ser para não ficar cego.

Os animais estavam estranhos, as galinhas se recolhiam para o galinheiro, os gatos e cachorros pareciam tontos, o céu escurecia e nada do bolo chegar. Às vezes arriscava uma espiada para o céu, mas logo aquela ânsia me fazia correr para o banheiro.

Até que minha irmã chegou no “carro de praça” com o meu bolo de aniversário. Só que ela chorava muito e eu só fui entender o que tinha acontecido quando vi aquela que seria uma cesta de flores de glacê cor-de-rosa transformada num amontoado de massa em cima de um bolo. A choradeira tomou conta de todos. Minha irmã tentava explicar o ocorrido. O motorista estava apressado, pois precisava chegar em casa antes do meio-dia e as pessoas pareciam histéricas, não olhavam para os lados. Aconteceu o previsto: uma freada mais forte e o bolo arremessado contra o banco da frente.

Aí eu entendi o que a vizinhança falava: era o final dos tempos, o mundo ia acabar!

E então o dia virou noite. Uma mulher passou correndo com um pano protegendo a cabeça. Chamava pelos filhos. Outros, como hipnotizados, olhavam para o céu. Meu pai e minha mãe nos chamaram, cortaram uma radiografia e distribuíram um pedaço para que cada um olhasse em direção ao sol.

E, onde antes havia um astro brilhando, agora só se via uma bola escura, com raios dourados na volta. Ficamos assim não sei bem quanto tempo. Aos poucos, a luz do sol começou a aumentar e aquela mancha negra a diminuir. As pessoas foram se acalmando, os galos começaram a cantar achando que um novo dia estava nascendo e a vida começava a voltar ao normal.

Minha mãe e minha irmã conseguiram, num passe de mágica, transformar aquela massa disforme num bolo que foi colocado, estrategicamente, numa mesa de canto. Eu coloquei meu vestido novo e fui esperar minhas convidadas.

Para mim, o dia do bolo amassado. Para o restante do mundo, o dia do último eclipse total do sol visível no continente americano até o final do século XX.

12 de novembro de 2011. Meu aniversário de 55 anos. Quanto tempo passou e essa história continua viva na minha lembrança.

Há alguns anos, minha irmã me presenteou com um cartaz que foi usado para a divulgação do evento que mobilizou toda a região sul do Brasil.

No início deste ano, procurando algo a respeito na internet, descobri um artigo do professor do Departamento de Física da UFRGS, Jorge Ducati. Ousei enviar-lhe um e-mail explicando que estávamos procurando fatos importantes acontecidos em Bagé para colocarmos no nosso Blog da Velha Guarda do Estadual. Para minha surpresa e alegria, ele, elegantemente, não só respondeu ao e-mail, contando como ocorreu o registro, como enviou-me uma foto tirada com sua Kodak Rio-400.

A seguir, reproduzo a resposta e anexo a foto.

"Cara Claudete

Aí vai a fotografia. A Lua, ocultando o Sol, e a coroa solar, aparecem pequenas, pois a câmera tem grande campo. Felizmente, a granulação da fotografia é muito boa, permitindo um "scan" com alta resolução, possibilitando uma ampliação razoável. As estrelas são pequenos pontos; Venus aparece perto da Lua. Estou tentando identificar as estrelas e as constelações, mas ainda tenho dificuldades pois ainda não descobri qual é o campo exato da câmera, para comparar com cartas celestes. Em 1994, observei o eclipse em Erechim. Ainda espero ver outros...

Abraços
Jorge Ducati"


A foto enviada pelo prof  Ducati para a nossa colega Claudete
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Trecho do artigo:
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"No quadro do eclipse total do Sol de 12 de novembro de 1966, participei de duas excursões, uma em 5 de novembro para observar os lançamentos de foguetes da NASA na praia do Cassino, e outra em 12 de novembro para observar o eclipse em Bagé; foram atividades sem ligação com o envolvimento da UFRGS no evento. *Ainda tenho uma bela fotografia do eclipse total, que tirei com minha câmera Kodak Rio-400, onde, além da coroa solar, aparecem algumas estrelas.* Dessas atividades, incluindo a dos pequenos foguetes, participava o João Alziro Herz da Jornada."

(Memórias pessoais da Astronomia no IF- Cientista amador)
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Enviado pela colega

Claudete Mari da Costa Macedo
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15 comentários:

Claudete disse...

Vaz, obrigada pela publicação. Provavelmente, muitos dos nossos colegas do Estadual também assistiram ao grande espetáculo do Eclipse de 66. Abraços.

Jorge Ducati disse...

Li a história do bolo e gostei muito: belo testemunho da reação das pessoas perante um raro evento astronômico e da Natureza. Obrigado por publicar a fotografia do eclipse, ela traz gratas lembranças... e Feliz Aniversário!

Abraços
Jorge Ducati

Anônimo disse...

Lembro bem desse dia! Morávamos numa casa em Bagé que tinha um enorme quintal, criávamos galinhas e, como fala a colega em seu relato, as aves encaminhavam-se tontas para o pouso, porque lentamente escurecia... Recordo também que havia um enorme canteiro de feijões florescidos. No dia seguinte,no entanto,as flores estavam completamente murchas. Pareciam queimadas... Radiação solar inadequada à hora do dia? Até hoje não sei... Recordo nitidamente do que vi no céu naquele dia! Um espetáculo para a vida toda! Parabéns pelo lindo relato, Claudete! Também ao fotógrafo que nos trouxe imagens guardadas no fundo da memória.Lembras do rebuliço em Bagé, Vaz? Abraço! Vera Luiza

Luiz Carlos Vaz disse...

Claudete, nós é que agradecemos por compartilhares com os nossos leitores as tuas memórias que, certamente, remetem às nossas recordações desse fato tão marcante da nossa juventude em Bagé.

Luiz Carlos Vaz disse...

Professor Ducati: momentos inesquecíveis para uma geração de jovens cientistas (e de curiosos) captados por uma singela "Rio 400" e, 45 anos depois, estão aí... quem diria, hein?

Luiz Carlos Vaz disse...

Sim, Vera Luiza, uma fuzarca enorme... muita gente falando "estrangeiro" e nós, guris do Estadual, querendo namorar umas gurias que haviam chegado em um "autobus" de Canelones...

Gerson disse...

Caro profº Ducati, como seguidor deste blog agradeço a sua sensibilidade de por a disposição essa maravilhosa foto publicada aqui, esta é uma prova da grandeza de sua alma de professor, muito obrigado.

Claudete disse...

Obrigada pelas palavras. E um agradecimento especial ao prof. Ducati que, além de ter fornecido a famosa foto (que não me deixa mentir!), nos deu a honra do comentário no blog da Velha Guarda!

Cid M. Marinho. disse...

Prezada Claudete, meus parabéns pela tua impressionante história sobre o dia do nosso "Eclipse Total do Sol".
Também agradeço ao cientista e prof. Ducati, por ter-nos possibilitado relembrar visualmente, aquele fantástico fenômeno astrológico!
No dia do eclipse eu estava com 12 anos de idade, cursava o 5º ano primário, e apesar das advertências das professoras, e dos meus pais, para que se observasse o "eclipse" usando uma "proteção para os olhos"... Eu fiz pouco caso, e depois que o Sol ficou totalmente encoberto pela Lua, eu me arrisquei, e olhei a olho nu, aquele incomparável fenômeno astrológico. O Sol tinha se transformado numa "esfera negra"! Foi algo de maravilhoso, e ao mesmo tempo assustador! Nunca mais eu assisti a outro espetáculo semelhante àquele!
Daquela bela ocasião, eu guardo até hoje, um "livreto" publicado pela Prefeitura Municipal, contendo: O "relatório" do astrônomo Luiz Muniz Barreto, As "delegações cientificas" que estiveram presentes, A "Planta da Cidade", Várias fotografias de prédios históricos (impressas em cor vermelha), E desenhos do Attila Siqueira. E tal e coisa!

Sérgio M. P. Fontana disse...

"Os animais estavam estranhos, as galinhas se recolhiam para o galinheiro, os gatos e cachorros pareciam tontos, o céu escurecia...".
O início do fenômeno, assim descrito pela Claudete, é a exata reprodução do que aconteceu no pátio lá de casa, onde só faltavam os gatos. Enquanto isso, nós observávamos através de lâminas de vidro [120 x 80 x 2 (mm)] enfumaçadas, o eclipse que, para nós todos, ficou na história.

Claudete disse...

Obrigada, mais uma vez, a todos que estão postando seus comentários. Fico feliz por trazer à lembrança dos amigos da Velha Guarda um dia tão especial da nossa cidade.
Estou curiosa para ver o tal livreto do Cid. É uma relíquia! Vaz e Vera Luíza, a "fuzarca" realmente foi grande e, como confirmou o Sérgio, até os bichos estranharam a movimentação. Gerson, muito legal o teu depoimento. Realmente a cidade já estava movimentada há alguns dias. Lembro de meu pai falar que tinha muita gente do exterior na cidade. Só que tu eras um privilegiado, morando bem no centro, pertinho do hotel Charrua onde esse pessoal estava hospedado. Eu morava no bairro Getúlio Vargas, perto de onde hoje é a rodoviária, então as "impressões" realmente eram diferentes. O evento, de repercussão internacional, está registrado também no cartaz, do qual estou mandando uma cópia para que o Vaz possa publicá-lo. Acho que podemos reunir todos esses "causos" e fazer um livro,não é mesmo? Abraços a todos. Claudete

Cid M. Marinho. disse...

Grande Gerson!
Com exclusividade para ti, segue abaixo, uma relação com algumas das "delegações de cientistas" estrangeiros, que se aquerenciaram por estas plagas, em 1966...

1-University of Minnesota, School of Physics.
2-University of Pennsylvania.
3-Adelphi University.
4-Iit Research Institute.
5-Air Force Cambridge ReseaschLab.
6-New York University.
7-U.S. Naval Academy.
8-Observatório de Valongo.
9-Sonnenborgh, Utrech, The
Netherlands.
10-Observ. Astronômico Di Roma.
11-Direcion Nacional de Meteorologia del Uruguay.
12-Servicio Geográfico del Uruguay.
13-Centro di Astrofisica del CNR, Firenze, Itália.

Eu conheci o "Restaurante Santa Cruz", daquela época... Moro há quase 50 anos, à cerca de três quadras da antiga Casa Carioca.
"Oi-ga-le-tê, índio velho bem arcaico, este tal de Cid Marinho, Tchê!!!"

Luiz Carlos Vaz disse...

... e tem um Arquivo invejável e democrático! Vida longa ao Cid Marinho, o "Homem Arquivo"!

Anônimo disse...

Vaz, e amigos do blog

Um fato muito interessante, que não aparece registrado, foi a invasão de cientistas e estudiosos de astronomia, que a cidade teve no ano de 1966.
Nossa pacata Bagé dos anos 60 foi subitamente alvo de interesse mundial, em uma era pré globalização, muitos vieram de países distantes estudar o fenômeno.
Haviam pesquisadores de quase todos os continentes, mas a maioria eram americanos, europeus, e alguns japoneses.
Na época minha familia era proprietária do Restaurante Santa Cruz, na General Osório, ao lado da Casa Carioca.
Meu pai costumava receber a todos, e usava seu espanhol de fronteira, mas um o venceu, um alemão cabeludo, e de longa barba, não falava nada além do próprio idioma, este costumava levar seus sofisticados equipamentos onde quer que fosse, e todos ficavam admirados com as lunetas, telescópios, e máquinas além da compreensão da maioria dos frequentadores habituais do estabelecimento.
A comida era farta e variada, todos voltavam, o restaurante estava permanentemente funcionando no seu limite de lotação, mas os garçons estavam trabalhando felizes, as gorjetas eram em moedas valorizadíssimas na época.
Abraço
Gerson

Anônimo disse...

Cid Marinho

Gostei desta tua lista. Confirmando com os meus pais, o tal alemão cabeludo era na verdade um holandês, e na tua lista aparece uma universidade holandesa, bingo.
Abraço
Gerson