18 de novembro de 2011

Os guarda-chuvas do amor - XIV, As varetas do guarda-chuva


NUNCAFIANDO

As varetas do guarda-chuva

Antunes Ferreira (*)
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E, de repente, começou a trovejar. E o negrume do astro a relampejar com os raios em catadupa. A electricidade celeste saltou dos fusíveis, as nuvens acasteladas resolveram-se em bátegas. Rogério encolhido sob o chapéu-de-chuva tentou aguentar uma rajada traiçoeira, mas foram-se-lhe as varetas, esventrando a sombrinha. 

Comparsa da trovoada era um frio cortante, arrastado a vento. Na rua amanteigada os carros borrifavam água lamacenta sobre quem ia no passeio ou tentava atravessar o rio, a vau. A cortina de água transforma-se em cascata, ouviam-se mais longe ou mais perto sirenes de bombeiros rasgando o troar desmesurado. O tempo desavindo com os humanos não dava tréguas.

Espirrando chuva
O homem ia buscar o filho à escola, o garoto ficara a preparar o TPC, pelo menos era assim que se dizia no antigamente, os trabalhos para casa, melhor eram feitos nas carteiras da sala, um professor a acompanhar, sem horas extraordinárias. Um luxo, tinham sido elas. Agora, com a crise, os ditames do poder, haviam-nas proibido, o País precisava de sacrifícios para ganhar a felicidade – à distância.

Encharcado até ao esqueleto, Rogério chegou ao seu destino. Entrou, a porta meio aberta meio fechada não opôs resistência, não havia ninguém que o impedisse de penetrar. Mau indício, um pai deixava um filho, crente de que ele se encontrava resguardado e, afinal, sem vivalma a cuidar para que nada lhe acontecesse. Nem a ele, nem aos companheiros da aula, mas, o egoísmo não se detém nesses pormenores, o dele era o dele.

Com um sorriso simpático

Finalmente apareceu-lhe uma senhora ainda jovem, um par de lentes encarrapitadas no nariz, dioptrias carregadas, mas sorriso simpático, boa noite, boa noite era uma força de expressão com tamanho temporal; ao que vinha? Pois também muito boa noite, vinha pelo filho Eduardo, era a mãe que costumava vir buscá-lo, mas isso eram outras contas de um outro rosário, viera, mas já não vinha.

A senhora carregou o cenho, sempre acontece cada coisa, mas só para ela mesma, o seu rebento é um garoto estupendo, alegre, esperto, que não é a mesma coisa que inteligente, mas também o é, estudioso, correcto, bem-educado, simpático. Um tanto brincalhão, mas com a idade dele até é bom que o seja, não deveria ser diferente e, felizmente, não era.

E, apenas, uma pergunta: em casa, como é? Exactamente como a senhora doutora disse, além do que afirmou é terno, carinhoso, amigo do irmão mais velho, um filho que dá regalo de o ter assim. Igual ao outro, o Francisco. Essa assentiu, sabia, o Chico também andara por ali, tinha ela e tinham todos saudades do gaiato, o irmão era um sucessor à altura.

Cumprimentos de despedida, a senhora a aconchegar o cachecol do rapazinho, toma cuidado, não te molhes, vais com o teu pai, não é preciso fazer-te recomendações, o senhor desculpe, mas é o meu hábito, uma professora é uma galinha para os seus alunos, pintos amarelos, pretos ou castanhos, todos iguais, todos diferentes, não ligue, é o peso da frase feita, da publicidade.

Mas, agora reparo, o senhor não traz guarda-chuva, o miúdo tem capuz, mas pode não chegar com a carga de água que vai pela cidade. Eu empresto-lhe um, é do chinês mas é resistente, nem parece da origem. Agradeceu Rogério à senhora doutora, eu sou apenas licenciada, não me doutorei, para a malta sou a setôra, nada mais.

Já sei, um hambúrguer e...
Saíram, a tempestade abrandara, Eduardo vamos ali à pastelaria, comes qualquer coisa, o que queres, já sei, um hambúrguer e uma cola, pai, é Coca, não é Pepsi. Não, hoje é um galão quente, para aqueceres. Está bem, gostava mais da lata e da palhinha, mas se é assim que achas. Olha, meu filho, a vida não são rosas, e mesmo essas têm espinhos.

Veio a sanduíche, veio o galão, veio uma bica, um copo de água e um rissol de camarão. Pai, a mãe e o mano onde foram? Não voltam meu filho, não voltam. E porquê? Vamos andando, a ver se apanhamos um táxi. Mas, porquê, Pai. Olha filho, a vida não são rosas. Já sei, Pai. E aquele senhor que ia lá a casa quando tu não estavas também não volta? Também não. Foram-se os três? E sem te dizer nada?

Os grossos pingos de água também ficaram calados. Na esquina da rua, adejavam coisas estranhas, borboletas negras sob a luz baça de um candeeiro espigado.
Pst, táxi.
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Henrique Antunes Ferreira
(*) Publicado no Blog A minha Travessa doFerreira
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2 comentários:

Gerson disse...

Tche Vaz, essa foi muito boa pois o tuga Ferreiramigo colaborou com o blog da Velha Guarda em grande estilo, e quando lí esse post lá
na Travessa, imaginei que irias po-lo aqui também. Eu fico admirado como esse nosso tuga escreve sempre com bom humor, baita abraço

Luiz Carlos Vaz disse...

Gerson, precisas conhecer essa figura "ao vivo". Ele - e a Raquel - são pessoas especialíssimas que me receberam em Lisboa como se um embaixador eu fosse, dada a fidalguia de ambos. Para "acabarem comigo" me levaram a jantar no Solar dos Bicos, frente ao Tejo...