28 de outubro de 2021

Samba do Covid Doido

 

                                                   Foto Luiz Carlos Vaz

Com a devida licença de Stanislaw Ponte Preta,

o Sergio Porto,  para os íntimos.

 

Luiz Carlos Vaz (*)

Para homenagear, quem sabe, as mais de seiscentas mil vítimas da Covid19, eis que o Governador anuncia em coletiva de imprensa a assinatura de um decreto obrigando a volta às aulas, de forma presencial, em todas as escolas do RS.

No mesmo dia em que volta a dobrar o número de vítimas, passando de 200 para 400 casos diários (sim, os casos fatais que já foram de 5.000 por dia, baixaram, mas agora voltaram a subir!), ficamos sabendo que as salas de aula, onde atualmente uma média de oito a dez alunos comparece presencialmente (cujos pais precisam assinar um calhamaço de folhas se responsabilizando por essa decisão - a de mandar os filhos à aula presencial, e as possíveis consequências dessa opção) passarão a abrigar de 30 a 35 alunos... claro, todos usando camisinha, digo, máscara, álcool gel... mas SEM o devido distanciamento social... Eles ficarão de segunda à sexta, mais de 4 horas lado a lado, mão com mão, nariz com nariz, boca com boca, protegidos por um equipamento que deverá (?) ser trocado a cada duas horas.

Quando Pelotas é destacada e notificada pelo Comitê de Crise pelo aumento de casos, essa é a decisão do Governador! (*)

Mas por que isso? Porque um órgão privado fez um estudo mostrando que as crianças e os adolescentes estão com necessidade de convívio social diário! E estão tendo prejuízos na sua “formação psicológica e acadêmica”. Não conheço a metodologia e nem outros detalhes científicos do trabalho. É tipo... “Engole esse comprido, já! E mostra a língua!”

Então, de acordo com esse estudo, os pais devem jogá-los às feras! Jogá-los na arena onde o vírus da Pandemia Covid19 os aguarda. Batatinha frita... um, dois, três!

Aos 45 minutos do segundo tempo, faltando um mês para encerrar o ano letivo, salvaremos esta geração de crianças amontoando-os em uma sala onde OS VENTILADORES OU CONDICIONADORES DE AR NÃO PODEM SER LIGADOS! Salvaremos sua psiquê, mas além das máscaras, creio que devam levar CAMISETAS E UNIFORMES para serem trocados, também, a cada duas horas.  

Como é fácil governar, decidir, sem conhecer, sem visitar uma sala de aula sequer! E no caso das escolas públicas, salas de aula cuja existência e manutenção estão sob a responsabilidade do próprio Estado! Batatinha frita... um, dois, três!

Como a Vida está valendo pouco! Não buscaremos, como se faz na medicina, uma segunda ou terceira opinião?

Só faltou o Governador dizer, como Winston Churchill, às vésperas da Inglaterra entrar de vez na segunda guerra mundial: “Nada tenho a lhes oferecer, senão sangue, suor e lágrimas!” Mas, pela ordem: suor de alunos e professores dentro das salas de aula sem ventilador; sangue daqueles que porventura vierem a morrer; e as lágrimas, ah! as lágrimas... as lágrimas serão daquelas que choram eternamente a morte dos seus filhos, dos seus professores, dos seus amigos... as Mães!

Escolham sua frase:

Batatinha frita... um, dois, três!

Que os jogos comecem!

Ave Caesar, morituri te salutant!

A minha é: NÃO vou ligar o botão do Foda-se!

Por isso lembro a última frase de Prometeu, gritada por Paulo Autran no final da peça Liberdade Liberdade: “Resisto! Resisto!”

 

(*) Veja os detalhes do Comitê de Crise na página do Governo do RS, acessando aqui:

https://estado.rs.gov.br/estado-emite-aviso-para-a-regiao-covid-de-pelotas

Considerando os pontos referidos, nos termos do Decreto n. 55.882, de 15 de maio de 2021, em face da análise das informações estratégicas em saúde, tendência de piora na situação epidemiológica que demanda a atenção no âmbito da Região COVID-19, se faz necessária a emissão de AVISO para que a região adote providências com medidas adequadas para a preservação da saúde pública, de forma a reduzir a velocidade de propagação, incluindo ações tais como, mas não só: reforço nas campanhas de comunicação local com orientação sobre uso orientação correto de máscara, distanciamento e ventilação; orientação da vigilância em saúde para que estabelecimentos realizem busca ativa de funcionários com sintomas de síndrome gripal e encaminhamento de casos suspeitos para testagem adequada; ampliação da disponibilidade e de locais de testagem; orientação da vigilância em saúde para que estabelecimentos e a população em geral garantam e respeitem o isolamento dos suspeitos e confirmados, manutenção da vacinação com fortalecimento da completude do esquema vacinal (incluindo a busca ativa de cidadãos e reforço da comunicação para aplicação da segunda dose), além de forte ação de fiscalização não só de aglomerações, mas também do cumprimento dos protocolos mínimos obrigatórios, especialmente de lotação dos estabelecimentos, em diálogo com a população e o empresariado local.

Encaminhe-se cópia do presente para o Comitê Regional da Região Covid-19, bem como ao Gabinete de Crise para ciência.

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(*) Luiz Carlos Vaz é jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

18 de outubro de 2021

Um dia em Rio Branco (Século XX)

                                                                  Fotos e Arquivo de Jorge Passos


Jorge Passos (*)


Amanheceu. Da quinta vem o ruído da enxada limpando o pasto na volta dos morangos. São poucos, mas bem cuidados. O terreiro das galinhas já foi varrido e os ovos das poedeiras colhidos. Ouço o trotezito do carro de la panaderia Los Claveles entregando o pão recém saído do forno. Rio Branco vai acordando. Tomo café para ir ao Colégio das Freiras e o pai me avisa que a Rural não pegou. "Sobe lá na Aduana e vê se não tem algum marinero, o Medina ou o Borges, pra me ajudar a dar uma empurrada."

Subo pelas escadinhas da ponte onde já se vê a correria com o Carromotor chegando. Passou pela estação Presidente Getúlio Vargas, Poblao de Vargas como se dice por acá. Vem apinhado.

No meio da ponte já está se aninhando na calçada o Nego Véio vendedor de bananas. Ele larga as bananas ali no chão e os passantes, com suas maletas de garupa sobre os braços que vão comprar açúcar, yerba, rapadura y otras cositas más no Armazém Oscar Amaro em Jaguarão, já vão adquirindo una penca que vai ser derrubada de uma sentada ali na sombra dos arcos da ponte.

Do outro lado, também de um trem, este, um Maria Fumaça que veio de Rio Grande e passou pela estação Basílio, vai descendo o pessoal cruzando a Mauá destino à Casa Azpiroz, Tienda Machado, Casa de las Lanas, Casa Simon, Casa Martinez, el Almacen del basco don Amado e outros comercios chicos que vendem de tudo que é bom do Uruguay: lanas, cobertores, telas balmoral, casacos de burma, quesos, dulce de leche, aceite y galletas Maestro Cubano, aquelas que vem nuns latões grandes que depois é bom de guardar os mantimentos em casa.  Algum desses viajantes até pensa em passar uns dias na fronteira hospedados ali no Hotel Italiano, comer una buena parrilla no Oásis acompanhado por una Norteña e quem sabe dar un paseo de bolanta por la Cuchilla, visitar os parentes que aqui ficaram e curtir la sesion de sabado nel cine Rio Branco, que en la cartelera anuncia la pelicula de guerra "Los Cañones de Navarone". Imperdible!

O velho, depois de me dar uma carona na rural até o colégio, já está na loja. Às vezes, quando tem muito movimento, como parece ser hoje, até almoça por lá. De tarde, depois dos temas feitos, também vou pra loja, ajudo com algum pacote, cevo o mate, mesmo pra algum cliente que puxa conversa, e me entretenho,  por entre o burburinho das mulheres , que essas são mais falantes, experimentando roupas, o rec rec rec das tesouras cortando telas, as negaceadas murmuradas da balconista Muñeca dizendo pra minha mãe: "Esa, baja todo y no compra nada."

Volta e meia, uma vez por mês, no começo da temporada, aparece algum viajante de Montevideo com sua mala cheia de novidades que vai abrindo e mostrando pro Velho. "Ney, eso se va a vender mucho este año", dizia o vendedor, enquanto eu e minha irmã menor ficávamos encantados ali na volta, só mirando porque não se podia falar, admirando aquele mascate fumando cachimbo com relógio de corrente de ouro e mostrando as mais lindas mercadorias da Capital del País y que a los brasileños les iba a gustar mucho.

Depois, já à tardinha, sentado num dos degraus da loja, ficava só  observando tranquilo aquele mundo de gente percorrendo a rua central do Rio Branco, num ir e vir, no  fervor de consumo,   a esperar a passagem  das gurias que saem do liceo.

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Jorge Passos
é um amigo de Jaguarão. Entra tantas coisas que ele faz, digo é fotógrafo, ciclista e apaixonado pelas água do seu Rio, onde nada, rema e navega... Um legítimo fronteiriço. Parte de sua história está narrada no curta metragem Casa de Rio, que concorre a vários prêmios ainda este ano.


9 de outubro de 2021

O Piratini Profundo, onde encontrei Xanadu

                                              Dona Claudete - Foto Luiz Carlos Vaz

 

Luiz Carlos Vaz (*)

A semana havia terminado ruim. Uma soma de coisas, umas sobre as outras, e eu envolvido em assuntos que não me diziam respeito... Pensava: eu não mereço isso! Mas, quem sou eu para saber o que eu mereço ou não mereço nesta vida?

É domingo, e pelo calendário lógico, não é o “fim da semana”, é o primeiro dia de uma nova semana. Chega uma mensagem da Suzana que me cobra uma conversa para tratar de vários projetos em andamento, coisas para fazer depois que tudo isso passar. E ela me convoca para ir até o Piratini Profundo! Sim, esse é o nome do lugar para onde ela vai seguidamente, para descansar, relaxar ou - nesses tempos atuais, fugir da Pandemia. Brincamos sempre com isso, principalmente quando não encontro a minha amiga de muitos anos aqui pela volta. A amiga de mesa de café, de conversas sobre arte, divagações sobre a vida ou bate-papos sobre as coisas simples do dia a dia, e também sobre a saudade que temos em comum da cidade que é puro amoR, e que nos encanta.

Quando ela some, já sei. Foi para o Piratini Profundo! Se não está no café, nas aulas de cerâmica, no pilates, não foi ao cinema, não foi batucar com a turma dos tambores... logo chega a notícia: Fui ao Piratini Profundo, ela dirá em mensagem ao nosso Grupo do Café.

Então resolvo atender seu chamamento e marco a minha ida para quarta-feira; mas será nesta quarta-feira e bem cedo, para “pegar” o café da manhã. E vou.

Depois de chegar, depois de um abraço que rascunha o fim de uma saudade imensa desde o início da quarentena, e depois do café com o omelete ao estilo da Vó Ida... saímos a caminhar pisando num chão repleto de primaveras.

Eu caminho ali pela primeira vez. Ela, que já anda por ali há décadas, me conduz como se fosse também a sua primeira vez. “Há coisas que são sempre novas”, ela me diz; “há flores que vejo pela primeira vez, e contemplo tudo como novo, pois tudo, a cada dia, aqui se faz novo”, completa.

Enchemos os pulmões de ar, com aquele ar que só existe ali, o ar da mata do Piratini Profundo. É um ar terapêutico, é pura energia. Contemplamos cada espécie naquela mata. Não conseguimos, claro, vislumbrar tudo. Enxergamos somente aquelas que os olhos permitem. Mas sentimos tantas outras que só podem ser vistas com os olhos fechados. Compreendemos que a árvore mais alta não é melhor que a milimétrica grama; elas interagem, formam um conjunto especial, que os especialistas chamam de bioma. E dessa forma, desde que existem, aquelas plantas se comportam para sobreviver, permanecer e para ser, a seu tempo, substituídas por outras da mesma espécie que esperam o momento exato para crescer.

Fotografo tudo que posso. Um pequeno ramo seco que serve de anteparo para uma minúscula aranha tecer sua teia; ou uma pequena flor que se abre para fornecer pólen para uma abelha, e que graças a isso, será fecundada... Há ali um mundo, um pequeno mundo harmônico, um mundo inteiro dentro do Piratini Profundo.

A quarentena nos trancou em casa, aproveitamos para caminhar como não fazíamos há muito tempo. E nessa caminhada há repechos, ladeiras, pedras, espinhos, galhos, e flores. Muitas flores, de todas as cores, tons e perfumes. E caminhos que se abrem, sempre novos, inéditos, únicos.

Voltamos por outro lado do mato, e nos acercamos da morada. Numa outra casa, que fica lindeira, está uma mulher; e já é perto do meio dia... Ela toma seu mate, solita, pegando um solzinho aconchegante. Não faz mais o frio de poucos graus quando ainda era cedo daquela manhã de primavera. Digo para a Suzana: Preciso fotografar essa senhora, mas só se ela permitir, pois não quero parecer um intruso. E ela me diz: Sem problema, ela gosta que batam fotografias dela...

Nos aproximamos, sou  apresentado para Dona Claudete. Nosso cumprimento é com um moderno toquezinho de mão fechada. Agora é assim, né? A gente se cumprimenta sem apertar as mãos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos. E percebo que não é “só um sorriso”, é um verdadeiro discurso de apresentação! Tudo que ela é está ali, de modo simples e verdadeiro, frente a mim.

Ela sequer passa a mão nos cabelos ou ajeita a blusa para a fotografia. E continua mateando... É Dona Claudete que está ali, no visor da minha câmera, inteira, simples, humana. Sua aura toma conta dos meus olhos e ela continua falando sem dizer uma só palavra. Naquele momento ela é a árvore de dez metros de altura, e eu sou a mísera graminha rasteira. Mas ela me vê como necessário, não se importa e nem leva em conta o meu suposto tamanho. Então me dou por conta que faço parte daquilo tudo. Sou parte, ali, da gente do Piratini Profundo. Ali encontro a minha Xanadu. A antiga Shangdu, a lendária Capital de Verão do Império Mongol, na China, e que foi descrita para nós pelo navegador Marco Polo.

E agora, abro os olhos e vejo

O que temos feito é real

Estamos em Xanadu

 

E percebo, depois de dezenas de clics que tentam aprisionar aquele instante, que fui levado até ali, não para tratar dos assuntos que combinei com a Suzana. Fui guiado até ali para conhecer Dona Claudete e sua sabedoria sem palavras.

            O sonho que veio através de um milhão de anos

   Que vivia em todas as lágrimas, ele veio até Xanadu

 

Não sei se voltei de lá o mesmo. Mas sei que voltei melhor, mais leve e completamente aliviado das preocupações que me chateavam. No retorno, pela sinuosa estrada do Piratini Profundo, “reli” o discurso sem palavras daquela mulher que possui a aura mais poderosa que já vi, pois fui a

 

Um lugar onde ninguém ousou ir

O amor que conheci ali

(nos olhos da Dona Claudete)

Eles chamam isso de Xanadu

 

                              爱与和平                           

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(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

1 de outubro de 2021

Adeus, Adão Fernando Monquelat, o guardião dos livros

 

Monquelat, morto no dia 22, também foi escritor, pesquisador e uma
figura cativante e agregadora. Foto Nauro Júnior / Agência RBS

Fábio Schaffner (*)

Como escritório de advocacia, funciona bem a sala 201 do Edifício Manhattan, na Rua General Telles, em Pelotas. O problema é a cozinha. Espalhados por todo o lugar, livros, livros e mais livros impedem qualquer acesso, inclusive à área de serviço, abarrotada por mais de 1 mil volumes. Incomodado, o advogado Pablo Monquelat exigiu providências ao vizinho de baixo, não por acaso seu pai, Adão Fernando Monquelat. Num sábado, Monquelat pai pôs-se a separar as obras de valor comercial das destinadas à doação. Ledo engano. Não conseguia se desfazer do acervo, um excerto mundano perto do santuário que mantinha na loja do térreo.

No dia 22 de setembro, um infarte fulminante abreviou a vida de Adão Fernando Monquelat. O livreiro, pesquisador e escritor estava em casa, preparando-se para o banho, quando sentiu um incômodo. Pediu uma aspirina, ofegou e morreu. Foi sepultado na manhã seguinte, no Cemitério Parque, em Capão do Leão. Deixou a mulher, Nóris, o filho Pablo, os netos Otávio e Celina e as enteadas Raquel e Carolina.

Aos 74 anos, Monquelat mantinha há quatro décadas um dos mais renomados sebos do Rio Grande do Sul, a Livraria Monquelat. Reduto de leitores de variadas estirpes, ali não era preciso saber o nome do livro, do autor, muito menos a editora. Não raro, apenas um breve detalhe da capa já bastava para que o conhecimento enciclopédico do anfitrião remetesse à prateleira certa, à localização exata. Na esteira, surgia uma conversa sobre as sutilezas da obra, a vida do escritor, o contexto histórico. Não era uma compra. Era uma celebração da leitura.

Natural de Pelotas, Monquelat forjou a vocação devorando gibis de heróis, fossem extraterrestres com superpoderes, como o Super-Homem, ou caubóis mascarados à la Kid Limonada e Zorro. A paixão se transferiu aos livros quando a mãe, furiosa por causa de uma nota baixa em latim, pôs fogo à coleção.

Monquelat se formou técnico em contabilidade e cursou Psicologia, mas seu destino era fadado às letras. Morou em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre, foi sócio de transportadora e vendeu terrenos no Litoral Norte antes de voltar a Pelotas nos anos 1980 e abrir a Livraria Lobo da Costa. Apaixonado pela literatura cisplatina, abastecia as estantes viajando a Montevidéu a cada dois meses, em busca de novos autores e raridades consagradas.

Em 1992, tamanha devoção à arte de escarafunchar prateleiras poeirentas rendeu-lhe uma das maiores descobertas da literatura nacional. Monquelat encontrou em Montevidéu um exemplar do mítico A Divina Pastora, de Caldre e Fião. Tido como primeiro romance escrito no Rio Grande do Sul e segundo no país, a obra de 1847 estava desaparecida havia mais de um século, tornando-se objeto de culto entre pesquisadores e literatos.

Muito falada, jamais vista, a “novella rio-grandense”, como denominada na folha de rosto, virou enigma, disseminando dúvidas sobre sua própria existência. De volta ao Brasil, Monquelat festejava ter encontrado “o santo graal da literatura gaúcha”. O único exemplar até hoje conhecido foi vendido por Monquelat ao Grupo RBS, que lançou uma segunda edição e expôs o original. O achado tornou Monquelat célebre no circuito livreiro, levando-o a rebatizar o sebo, agora com o próprio nome.

Monquelat também prestou honrosos serviços como escritor e pesquisador. Simoniano adicto, descobriu textos inéditos de Simões Lopes Neto e até mesmo o antigo casarão em que viveu um dos mais importantes autores da literatura regional brasileira. A descoberta impediu a demolição do imóvel, que hoje abriga o instituto dedicado à memória de Simões.

Monquelat desbravou sobretudo a Pelotas dos desvalidos, escrevendo livros que desnudaram o primeiro ciclo econômico gaúcho. Ao revelar como a tortura imposta aos escravizados por estancieiros ditos abolicionistas financiava o fausto dos saraus pelotenses, expôs a hipocrisia do baronato do charque, cujos filhos estudavam em Paris, mas a riqueza provinha da senzala. Suas pesquisas se estenderam ao patrimônio histórico e à poesia, totalizando 13 obras, entre elas duas incursões na ficção marcadas por uma verve despudorada e iconoclasta.

Era no sebo da Telles, todavia, que ele magnetizava os convivas. Sob a sinuosa melodia das composições de Bach, sentava-se à janela e irrigava a charla com um amargo pura folha, observando por cima dos óculos os clientes perderem o controle das horas, imersos em 40 metros quadrados de estantes abarrotadas de livros.

Monquelat era como a boa leitura que tanto prezava: acolhedor. Vai fazer muita falta.

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(*) Fádio Schffner é jornalista, atua no jornal Zero Hora. O texto foi publicado na ZH dia 30 de setembro de 2021.