9 de outubro de 2021

O Piratini Profundo, onde encontrei Xanadu

                                              Dona Claudete - Foto Luiz Carlos Vaz

 

Luiz Carlos Vaz (*)

A semana havia terminado ruim. Uma soma de coisas, umas sobre as outras, e eu envolvido em assuntos que não me diziam respeito... Pensava: eu não mereço isso! Mas, quem sou eu para saber o que eu mereço ou não mereço nesta vida?

É domingo, e pelo calendário lógico, não é o “fim da semana”, é o primeiro dia de uma nova semana. Chega uma mensagem da Suzana que me cobra uma conversa para tratar de vários projetos em andamento, coisas para fazer depois que tudo isso passar. E ela me convoca para ir até o Piratini Profundo! Sim, esse é o nome do lugar para onde ela vai seguidamente, para descansar, relaxar ou - nesses tempos atuais, fugir da Pandemia. Brincamos sempre com isso, principalmente quando não encontro a minha amiga de muitos anos aqui pela volta. A amiga de mesa de café, de conversas sobre arte, divagações sobre a vida ou bate-papos sobre as coisas simples do dia a dia, e também sobre a saudade que temos em comum da cidade que é puro amoR, e que nos encanta.

Quando ela some, já sei. Foi para o Piratini Profundo! Se não está no café, nas aulas de cerâmica, no pilates, não foi ao cinema, não foi batucar com a turma dos tambores... logo chega a notícia: Fui ao Piratini Profundo, ela dirá em mensagem ao nosso Grupo do Café.

Então resolvo atender seu chamamento e marco a minha ida para quarta-feira; mas será nesta quarta-feira e bem cedo, para “pegar” o café da manhã. E vou.

Depois de chegar, depois de um abraço que rascunha o fim de uma saudade imensa desde o início da quarentena, e depois do café com o omelete ao estilo da Vó Ida... saímos a caminhar pisando num chão repleto de primaveras.

Eu caminho ali pela primeira vez. Ela, que já anda por ali há décadas, me conduz como se fosse também a sua primeira vez. “Há coisas que são sempre novas”, ela me diz; “há flores que vejo pela primeira vez, e contemplo tudo como novo, pois tudo, a cada dia, aqui se faz novo”, completa.

Enchemos os pulmões de ar, com aquele ar que só existe ali, o ar da mata do Piratini Profundo. É um ar terapêutico, é pura energia. Contemplamos cada espécie naquela mata. Não conseguimos, claro, vislumbrar tudo. Enxergamos somente aquelas que os olhos permitem. Mas sentimos tantas outras que só podem ser vistas com os olhos fechados. Compreendemos que a árvore mais alta não é melhor que a milimétrica grama; elas interagem, formam um conjunto especial, que os especialistas chamam de bioma. E dessa forma, desde que existem, aquelas plantas se comportam para sobreviver, permanecer e para ser, a seu tempo, substituídas por outras da mesma espécie que esperam o momento exato para crescer.

Fotografo tudo que posso. Um pequeno ramo seco que serve de anteparo para uma minúscula aranha tecer sua teia; ou uma pequena flor que se abre para fornecer pólen para uma abelha, e que graças a isso, será fecundada... Há ali um mundo, um pequeno mundo harmônico, um mundo inteiro dentro do Piratini Profundo.

A quarentena nos trancou em casa, aproveitamos para caminhar como não fazíamos há muito tempo. E nessa caminhada há repechos, ladeiras, pedras, espinhos, galhos, e flores. Muitas flores, de todas as cores, tons e perfumes. E caminhos que se abrem, sempre novos, inéditos, únicos.

Voltamos por outro lado do mato, e nos acercamos da morada. Numa outra casa, que fica lindeira, está uma mulher; e já é perto do meio dia... Ela toma seu mate, solita, pegando um solzinho aconchegante. Não faz mais o frio de poucos graus quando ainda era cedo daquela manhã de primavera. Digo para a Suzana: Preciso fotografar essa senhora, mas só se ela permitir, pois não quero parecer um intruso. E ela me diz: Sem problema, ela gosta que batam fotografias dela...

Nos aproximamos, sou  apresentado para Dona Claudete. Nosso cumprimento é com um moderno toquezinho de mão fechada. Agora é assim, né? A gente se cumprimenta sem apertar as mãos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos.


Ela sorri para mim com o maior sorriso que posso ter visto nos últimos tempos. E percebo que não é “só um sorriso”, é um verdadeiro discurso de apresentação! Tudo que ela é está ali, de modo simples e verdadeiro, frente a mim.

Ela sequer passa a mão nos cabelos ou ajeita a blusa para a fotografia. E continua mateando... É Dona Claudete que está ali, no visor da minha câmera, inteira, simples, humana. Sua aura toma conta dos meus olhos e ela continua falando sem dizer uma só palavra. Naquele momento ela é a árvore de dez metros de altura, e eu sou a mísera graminha rasteira. Mas ela me vê como necessário, não se importa e nem leva em conta o meu suposto tamanho. Então me dou por conta que faço parte daquilo tudo. Sou parte, ali, da gente do Piratini Profundo. Ali encontro a minha Xanadu. A antiga Shangdu, a lendária Capital de Verão do Império Mongol, na China, e que foi descrita para nós pelo navegador Marco Polo.

E agora, abro os olhos e vejo

O que temos feito é real

Estamos em Xanadu

 

E percebo, depois de dezenas de clics que tentam aprisionar aquele instante, que fui levado até ali, não para tratar dos assuntos que combinei com a Suzana. Fui guiado até ali para conhecer Dona Claudete e sua sabedoria sem palavras.

            O sonho que veio através de um milhão de anos

   Que vivia em todas as lágrimas, ele veio até Xanadu

 

Não sei se voltei de lá o mesmo. Mas sei que voltei melhor, mais leve e completamente aliviado das preocupações que me chateavam. No retorno, pela sinuosa estrada do Piratini Profundo, “reli” o discurso sem palavras daquela mulher que possui a aura mais poderosa que já vi, pois fui a

 

Um lugar onde ninguém ousou ir

O amor que conheci ali

(nos olhos da Dona Claudete)

Eles chamam isso de Xanadu

 

                              爱与和平                           

_________________________________________________

(*) Luiz Carlos Vaz é Jornalista, Fotógrafo e Editor deste Blog

Nenhum comentário: